A etimologia da palavra carimbo é proveniente de Angola, especificamente do idioma quimbundo ou kimbundu. A Grammatica Elementar de Kimbundu, publicada em 1888 por Heli Chatelain (1859-1908), descreve o idioma como “(...) á lingua geral do antigo reino de Angola” (p.XI). Faz parte das chamadas línguas bantu e utilizada pelo povo ambundu. A região na qual está localizada Luanda, capital angolana, é um dos locais em que o quimbundo é falado (ALEXANDRE, 2020). O termo carimbo é constituído a partir dos termos Karimbu ou Kirumbu na qual Ka significa pequena e rimbu possui sentido de marca, ou seja, a palavra teria como sentido: pequena marca (PORTO, 2016, p.27-28). Na oitava edição Diccionario de Lingua Portugueza de Antonio de Moraes Filho, publicado em 1890, o carimbo foi descrito da seguinte forma:
Carimbo, S. m. (do Anbundo, ou Angolense quirimbu, marca) Marca publica, legal, que se põe sobre alguma cousa; especie de sêllo. § Carimbo de papel moeda; marca que por lei se lhe poz no banco commercial de Lisboa, para ser assignalado, e poder verificar-se quanto andava em circulação. § Peça de metal ou de borracha, contendo letras ou emblemas com que se marcam a tinta, ou em relevo. papeis, cartas, facturas, contas, letras, etc (p.412).
Para além das definições acima apresentadas é possível identificar o carimbo como um objeto vinculado a mudanças ocorridas nas esferas privada e pública durante os Oitocentos. No âmbito da intimidade do lar, o carimbo e/ou carimbador estão associados a inclusão de um novo cômodo às casas burguesas: o escritório ou gabinete. Em entrevista ao jornalista João do Rio ¹ , realizada em 1908, a escritora Julia Lopes de Almeida (1862-1934) foi perguntada sobre seu processo de criação: “Como faz seus romances D. Julia?”. A autora descreveu que em razão da rotina do lar e dos cuidados com os filhos, seu processo de escrita estava devagar, pois era necessário que a casa ganhasse ares de tranquilidade para que ela pudesse entrar no espaço da casa voltado a prática intelectual e da escrita:
Ha uma certa hora do dia em que as cousas ficam mais tranquilas. É a essa hora que eu escrevo, em geral depois do almoço. Digo ás meninas: - Fiquem a brincar com os bonecos que eu vou brincar um pouco com os meus. Fecho-me aqui, nesta sala, e escrevo. Mas não ha meio de esquecer a casa (ALMEIDA Apud RIO, 1908, p.31)
Deve ser observado que a utilização desse espaço pelo sexo feminino não era algo costumeiro, o gabinete e a biblioteca eram considerados locais eminentemente masculinos. Como define Junqueira Schettino (2012)
O pai dominava a casa, ele possuía aposentos particulares como o fumoirs e a sala de bilhar, local onde os homens se reuniam após os jantares sociais, a biblioteca e o escritório, refúgios masculinos. Enquanto isso, a mulher, mesmo quando trabalhava fora não dispunha de um escritório próprio dentro de casa, que era uma extensão do público dentro do privado (p.62).
A existência de um gabinete de trabalho ou escritório no ambiente da casa passou a ser realidade nas casas burguesas do século XIX. Como descreve Malta (2012) “No Brasil, o escritório ajuntava funções de gabinete de trabalho e biblioteca” (p.164). No manual feminino Livro das Noivas a própria Julia Lopes descreveu tal ambiente, após uma visita à casa da amiga Annita Mendes:
Entrámos em um cscriptorio amplo, illuminado por duas janellas largas, sem cortinas. Em cada canto uma estante de nogueira envidraçada, larga e baixa, continha cada uma cerca de trezentos volumes bem arrumados. Ao centro, sobre o parquet encerado e sem tapetes, assentava bem uma mesa (quadrada, ampla, em que os papeis podiam ser manuseados á vontade. Uma cadeira de leitura extendia convidativamente os seus grossos braços de couro, e outras de diííerentes feitios e tamanhos conservavam-se em grupos symetricos, bem arrumados. Annita explicou: Meu marido tem muito methodo e muita ordem. Gosta de estudar e de ler em socego. Esta sala demonstra isso mesmo. Tudo aqui é solido, simples, fresco e elegante.... Tem os livros catalogados; ajudei-o nessa tarefa, muito contente por auxilial-o e ouvir-lhe as explicações que me dava d'este ou daquelle auctor (ALMEIDA, 1914, p.155).
Para além dos móveis, esse novo cômodo necessitava de uma série de objetos que contribuíssem para que esse espaço realmente se configurasse como lugar de produção intelectual. Conforme Carvalho (2020)
(...) quando se fala em trabalho e modernidade não se deve pensar nunca no trabalho repetitivo das fábricas ou no trabalho manual da agricultura, do artesanato e dos serviços urbanos. Os ambientes de trabalho destacados nas revistas são as mesas e as escrivaninhas, sinônimos de atividade intelectual entendida como produção de ideias mas também como contabilidade, planejamento, gerenciamento, legislação e comunicação expressos por meio de suportes materiais relativos à escrita e à fala. Sobre a mesa figuram papéis, livros, tinteiros, canetas, telefones, carimbos ² , arquivos, máquinas de escrever (p.150).
O carimbador podia ser feito de diferentes materiais como a madeira ou a prata. Os impressos traziam anúncios sobre lojas de carimbos. Como pode ser observado em edição do Almanak Laemmert de 1893:
Companhia Typographica do Brazil (antiga Typographia Laemmert), r. dos Invalidos, 93. Tem sempre um variado sortimento de carimbos fixos e moveis para datar, de metal e de borracha, e vende também em separado os acessórios, como typos, tampões e tintas. Sobre o pedido Prospecto, com Specimen e Preço-corrente gratis. A Companhia acceita agentes para a Capital Federal e para o interior (p.575).
No âmbito da administração pública, o carimbo se configurou como um dos objetos que simbolizam o funcionamento da máquina pública. O carimbo tinha status de dar caráter oficial a papéis e documentos. No âmbito do Brasil colônia era o carimbo da Real Mesa Censória que permitia ou não, a circulação de livros e papéis pelo seu território (ABREU, 2009).
Durante o período imperial, o carimbo também foi utilizado como instrumento de chancela de documentos e selo de identificação e pertencimento de instituições governamentais. A publicação Coleção das Leis do Imperio do Brazil de 1885, por exemplo, trazia uma série de diretrizes sobre a necessidade do registro do carimbo desde as passagens e bilhetes utilizados nos meios de transporte, passando pelas as notas de dinheiro, entregas dos Correios e os livros das bibliotecas das faculdades. Além disso, os decretos determinavam as receitas e despesas da Câmara Municipal com “aferição e carimbos” (BRASIL, 1886, p.798-799). O significado desse objeto se tornou tão importante que ganhou status de profissão masculina. O carimbador era o funcionário responsável por garantir que quaisquer papeladas ganhassem uma marca oficial: “Foi nomeada uma comissão de empregados da Caixa de Amortização formada dos conferentes José de Lyra e Oliveira, João Alves Pinto Guedes e do carimbador João José da Silva, para acompanhar o preparo chimico da modificação das notas do governo (...)” (GAZETA DE NOTÍCIAS, 24/09/1889, p.1).
Nesse contexto, o carimbo ou carimbador se constituiu em objeto que ganhou espaço e se fez presente no cotidiano familiar e burocrático do século XIX.
¹ João do Rio era o pseudônimo do jornalista João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto ou, simplesmente, Paulo Barreto (1881-1921).
² Grifo das autoras
ABREU, Márcia. A Liberdade e o erro: a ação da censura Luso-Brasileira (1769-1834).Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. v.6, n.3, p.1-23, jul./ago./set.2009. Disponível em: https://www.revistafenix.pro.br/revistafenix/article/view/191 . Acesso em: 20.abr.2022.
ALEXANDRE, Hélder Pande. Topônimos angolanos de origem bantu: princípios para harmonização gráfica. Revista Brasileira de Linguística Aplicada v. 20, n. 3, p. 465-498, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1984-6398202016464. Acesso em: 5.mai.2022.
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CARVALHO,Vânia Carneiro de. Gênero e Artefato: o sistema doméstico na perspectiva da cultura material: São Paulo, 1870-1920. São Paulo: EDUSP; FAPESP, 2020.
CHATELAIN, Heli. Grammatica Elementar do Kimbundu ou Língua de Angola. Genebra – CH: Typographia Charles Schuchardt, 1888-1889. Disponível em: https://www.google.com.br/books/edition/Kimbundu_grammar/3QMUAAAAYAAJ?hl=pt-BR&gbpv=0 . Acesso em: 5.mai.2022.
GAZETA DE NOTÍCIAS. Notas do Banco Nacional, Rio de Janeiro, 24 de setembro de 1889. Disponível em: http://memoria.bn.br/DOCREADER/103730_02/16271 . Acesso em: 23.abr.2022.
JUNQUEIRA SCHETTINO, Patrícia Thomé. A Mulher e a casa: estudo sobre a relação entre as transformações da arquitetura residencial e a evolução do papel feminino na sociedade carioca no final do século XIX e início do século XX. 322fls. 2012. Tese (Doutorado) - Escola de Arquitetura. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2012.
MALTA, Marize. O olhar decorativo: ambientes domésticos em fins do século XIX no Rio de Janeiro. Mauad X; FAPERJ, 2012.
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