Os ritos funerários podem ser entendidos como demonstração das relações afetivas entre os humanos. Eles são perceptíveis na trajetória de constituição das diferentes culturas, tanto no estabelecimento de fronteiras que separam a vida da morte, como formas de atravessá-las e como mecanismo de ritualizá-los.
Dentre os diversos e inumeráveis objetos da cultura material funerária e de manifestação de afetos entre humanos, as cartas de luto estão inseridas neste universo. Dentre suas funções, elas se referem a uma prática do registro escrito destinado a comunicar a passagem do sujeito para outro plano material, ou prestar-lhes homenagens que nunca serão lidas pelo próprio.
As cartas de luto, enquanto objetos da materialidade funerária praticada nos centros urbanos entre os séculos XIX e XX, são identificadas pelas margens pretas que emolduravam as missivas e os envelopes. Destinadas aos amigos e familiares do finado, eram entregues por mensageiros contratados ou então pelo serviço de carteiros.
Na cidade de São Paulo, por exemplo, no início do século XX, a seção tipográfica da escola profissional do Liceu do Sagrado Coração produzia este tipo de artefato juntamente com outros objetos gráficos como bilhetes comerciais, cartões de visita, faturas, livros e outros tipos de impressos. ¹
Como ilustração de usos e circulação deste objeto, em 1907, uma carta de luto foi enviada à redação do jornal Correio Paulistano, destinado à Maria da Conceição Dias, cujo conteúdo tratava informar sobre a existência de uma herança importante em benefício dessa senhora. ² Já na cidade do Rio de Janeiro, o jornal O Século, em matéria sobre o falecimento de uma mulher, relatou que a mesma havia deixado quatro cartas, cada qual destinada ao pai, irmã e amigos próximos, na qual se despedia das pessoas com quem mantinha uma relação afetiva mais próxima. ³ Na mesma cidade, em um domingo pós-carnaval de 1940, alguém lamentava no jornal Correio da Manhã o falecimento de um amigo de infância com quem havia compartilhado dos bancos escolares.⁴
As cartas, enquanto elementos da cultura escrita, atravessavam as práticas cotidianas de sujeitos letrados e não letrados. Da mesma forma que traziam notícias sobre outras experiências, nascimentos, casamentos ou mesmo dos traumas de guerra. Elas materializavam a dor da perda ou a alegria da vida. Especificamente, aquelas de luto serviam como anúncio post-mortem, que eram enviadas aos parentes e amigos para as celebrações de encomenda da alma daquele que partiu, e por onde se prestavam homenagens ou funcionavam como convite para as exéquias.
¹ O Commercio de São Paulo, 7/10/1902, n. 3080, p. 4
² Correio Paulistano, 23/7/1907, n. 15782, p. 5. ³ O Século, 10/03/1908, n. 471, p. 1 ⁴ Correio da Manhã, 21/02/1904, n. 983, p. 2
O COMMERCIO DE SÃO PAULO, São Paulo: tipografia própria, período 1893-1909. (Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional). Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/227900/0. Acesso em: 02 de março de 2022
CORREIO PAULISTANO, São Paulo: tipografia própria, período 1900-1919. (Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional). Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/090972_06/0. Acesso em: 02 de março de 2022
CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro: tipografia própria, período 1901-1909. (Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional). Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/089842_01/1. Acesso em: 02 de março de 2022.
O SÉCULO, Rio de Janeiro: tipografia própria, período 1906-1916. (Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional). Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/224782/1. Acesso em: 02 de março de 2022.