A imagem da caixa de madeira em formato de capelinha que ocupava o principal lugar da sala ao redor da qual a família e os amigos se reuniam para juntos partilharem as notícias, as emoções e as diversões (AZEVEDO, 2002, p.10).
A partir da epígrafe acima é possível imaginar uma sala com as paredes em tom creme, o papel de parede se destaca pelos detalhes em dourado. A janela do quarto dava para o jardim cuidado e para a rua em que transeuntes passavam de um lado para o outro. Ao lado desta janela se via o um móvel de madeira de lei, passado de geração para geração. Em cima deste móvel há um vaso de louça com lindas rosas dentro, uma mulher entra no cômodo, ela está em um vestido branco e rendado, o espartilho faz o contorno de sua silhueta e a saia é levemente volumosa, os cabelos estão presos em um coque. A mulher coloca seu leque em cima do móvel, ao lado de seu livro (um romance famoso da época) está o Rádio Capelinha, ela se senta, estica o braço e o liga – começa neste momento, a ouvir as notícias da manhã.
Com as inovações tecnológicas advindas no final do século XIX e início do século XX, mais um aliado no cotidiano feminino: o rádio. Os primeiros inventos e experiências radiofônicas são provenientes dos Oitocentos. No Brasil, o padre Roberto Landell de Moura (1861-1928) já tinha realizado experimentos de “transmissão e recepção da palavra falada” ao longo da década de 1890 (SANTOS, 2003, p.4-5). Na Itália, em 1896, o cientista italiano Guglielmo Marconi (1874-1837), realizou transmissões radiofônicas como nos moldes atuais.
Essa era a rotina de diversas mulheres da elite ao longo do século XIX e primeiras décadas dos Novecentos. Uma mulher para que fosse considerada “de boa família” tinha o lar como seu principal espaço de atuação e circulação. Uma mulher abastada sair à rua - sem a companhia do seu pai, do irmão ou do marido – não era algo costumeiro. Sua presença nos espaços públicos como teatros, encontros sociais e bailes tinham sempre a vigilância do marido e a própria sociedade (D’INCAO, 2018, p.228). Por este motivo, a maioria das mulheres no século XIX viviam a maior parte do seu tempo no ambiente domiciliar, cuidando da rotina da casa e nas horas vagas liam revistas e livros. “A possibilidade do ócio entre as mulheres de elite incentivou a absorção das novelas românticas e sentimentais entre ou bordado e outro, receitas de doces e confidências entre as amigas (D’INCAO, 2018, p.229).
No contexto brasileiro, oficialmente, a primeira transmissão de rádio ocorreu durante a Exposição Internacional de 1922; evento organizado como um marco dos festejos do centenário da Independência do Brasil. A introdução desse meio de comunicação também significava impingir novos modelos de comportamento e de alinhamento com o progresso norte-americano e europeu (COELHO, 2016, p.29-30):
Como na América do Norte, este processo ocorre dentro da pequena parcela da elite com condições socioeconômicas para ter acesso a equipamentos então muito caros e compreender as potencialidades do rádio, o que, no caso brasileiro, reveste-se de boa dose de idealismo, por um viés educativo-cultural associado, no imaginário, a noções de moderno e de progresso. (...) Este “o que diriam os estrangeiros de nós” fica patente na organização e realização da Exposição Internacional do Rio de Janeiro, que vai comemorar o centenário da independência do Brasil em 1922. De um lado, apresenta a pretensa pujança nacional e, de outro, serve de mostruário ao progresso vindo do exterior. No caso do rádio, adapta-se às necessidades das indústrias eletroeletrônicas dos Estados Unidos em fase de expansão multinacional que, sem os rendimentos provenientes da produção voltada à Grande Guerra de 1914-1918, buscam novos mercados para garantir e ampliar seus níveis de lucro (FERRARETTO, 2014, p. 11-12).
O modelo Rádio Capelinha começou a ser comercializado no Brasil na década de 1930, como explica o historiador Nicolau Sevcenko:
O rádio religa o que a tecnologia havia separado. Nesse sentido ele é o Orfeu moderno ou a “projeção órfica” a que aludia João do Rio, no seu sentido mais amplo e mais pleno. Não por acaso, na linguagem popular ele costumava ser carinhosamente chamado de “capelinha”, tanto pelo formato dos rádios com caixa em arco quanto pelo simbolismo transcendente que ele, literalmente, irradiava (1998, p. 586).
O aparelho tinha esse título em razão do seu formato remeter ao projeto arquitetônico das catedrais: “Suas características estéticas são do estilo Art Déco, que mantém linhas geométricas simples, com as extremidades levemente arredondadas” (SÃO PAULO, 2014). A madeira era o material utilizado na feitura desse meio de comunicação. Deve ser observado que a vinculação com a Art Déco encontra consonância com o fato desse estilo ter sido preponderante no Brasil das décadas de 1920 e 1940: “Expresso em pinturas, esculturas, prédios, móveis, rádios e objetos, o gosto déco está vinculado a um conjunto de manifestações artísticas que se propagou a partir dos anos vinte e viveu seu apogeu na década de 1930” (CORREIA, 2008, p.49).
O rádio deu um novo brilho ao ambiente familiar, a voz saía daquela caixinha e ecoava por todos os cômodos da casa preenchendo os ambientes vazios. Proporcionou mudanças na rotina dos indivíduos e no ambiente da casa, pois os membros da família costumavam sentar juntos para ouvir músicas e programas radiofônicos. As mulheres encontravam companhia em sua intimidade ao se distrair com as vozes dos cantores e locutores do rádio. Conforme Azevedo (2002): “É através da figura feminina que o rádio conquista um espaço de destaque no cotidiano familiar” (p.78).
Aos poucos, essas vozes saídas dos Rádios Capelinhas se multiplicaram. Meio de comunicação visto inicialmente como privilégio das famílias burguesas, transformou-se em um veículo de massa com a transmissão de radionovelas, propagandas publicitárias, cantores e cantoras distribuíam seu talento e ainda, transmissões de cunho político, como ocorreu nos Estados Unidos com o presidente Franklin Delano Roosevelt (1882-1945) e no Brasil, com o presidente Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954).
AZEVEDO, Lia Calabre de. No tempo do Rádio: radiodifusão e cotidiano do Brasil – 1923-1960. 2002. 277fls. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2002. Disponível em: https://www.historia.uff.br/academico/media/aluno/202/projeto/Tese-lia-calabre-de-azevedo.pdf . Acesso em: 19.abr.2022.
CORREIA, Telma de Barros.Art déco e indústria: Brasil, décadas de 1930 e 1940. Anais do Museu Paulista. São Paulo. n. Sér. v.16. n.2. p. 47-104. jul./dez 2008. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0101-47142008000200003 . Acesso em: 16.abr.2022.
COSTA, Patrícia Coelho da. Educadores no Rádio: programas para ouvir e aprender (1935-1950). Rio de Janeiro: PUC-Rio; Mauad X, 20016.
D’INCAO, Maria Ângela. Mulher e família burguesa. In: PRIORE, Mary Del; PINSKY, Carla Bassanezi. (Org.). História das Mulheres no Brasil. 10 ed. 6. reimpr. São Paulo: Contexto, 2018. p.223-240.
FERRARETTO, Luiz Artur. De 1919 a 1923, os primeiros momentos do rádio no Brasil. Revista Brasileira de História da Mídia (RBHM) - v.3, n.1, p.11-p.21, jan./jun2014. Disponível em: http://www.unicentro.br/rbhm/ed05/dossie/01.pdf . Acesso em: 18.abr.2022.
SANTOS, César Augusto Azevedo dos. Landell de Moura ou Marconi, quem é o pioneiro?. Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 26º, 2003, Belo Horizonte – MG. Anais (eletrônico). Belo Horizonte-MG: Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 2003. p.1-15. Disponível em: http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/33836484318172605221344813340609283668.pdf
SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: técnicas, ritmos e ritos do Rio. In: SEVCENKO, Nicolau. (Org.). História da vida privada no Brasil: da Belle Époque à Era do Rádio. v.3. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.513-620.
VERBETE RÁDIO CAPELINHA. Museu da Casa Brasileira. 2014. Disponível em: https://mcb.org.br/pt/acervo/radio-capelinha/ . Acesso em: 17.abr.2022.