Por água clama o Rio de Janeiro
A todo instante em fúria desabrida,
E o Governo escutando o seu berreiro
Mata-lhe a sede? Não! Faz avenida.
[...]
Em nossos tempos de neurastemia,
Está grassando a avenidomania,
Moléstia de feição a mais grotesca
Por isso, quando no Café do Brito
Pede-se um copo d’água,
Ouve-se um grito:
- Garçom, um copo de avenida fresca ¹.
(TIGRE, p. 36, 2005)
A Talha é um recipiente com o objetivo de armazenar água fresca para consumo no ambiente doméstico. A peça tem 34 cm de altura e foi confeccionada em faiança (cerâmica branca), no século XIX, com pinturas manuais de flores na cor rosa e fundo branco no estilo Art Nouveau. O utensílio em tela pode permitir a compreensão histórica de alguns dos hábitos do cotidiano, relacionados ao acesso e consumo de água limpa, bem como as atenções da esfera públicas para a sua distribuição e tratamento.
No Brasil, a partir do século XVI, as primeiras iniciativas para organizar o sistema de distribuição e tratamento de água ocorreram com a construção de aquedutos e encanamentos, no intuito de levar a água até as fontes, chafarizes e/ou bicas para acesso da população. No entanto, nesses locais, a qualidade da água era impactada pelo uso das lavanderias públicas, bebedouros de animais e descarte de lixo e esgoto nos locais de extração, contribuindo para a poluição da água.
Outro problema estava na distância entre as residências e os locais de coleta da água. Assim, alguns setores recorriam aos “aguadeiros ou carregadores de água, que circulavam pelas ruas da cidade, a pé ou em carroças, vendendo o líquido” (KLAUCK, 2018, p. 177) e as armazenavam em moringas, potes ou cuias.
No caso da elite brasileira, a importação de produtos europeus provocados pela abertura dos portos e a crescente integração do país no mercado mundial no século XIX, também deixou suas marcas nos recipientes para água, como a talha em faiança. Os utensílios domésticos produzido nesse material eram mais aceitos do que de outras modalidades de cerâmicas, tendo em vista, por exemplo, o alto valor econômico das peças de porcelana (SILVA, GOMES, 2009).
O processo de “purificação” da água pelas talhas era bastante rudimentar e ocorria por meio da decantação (BELLINGIERI, 2004), no qual, após a sedimentação, a água era retirada com o auxílio de uma concha, sem esbarrar no fundo, para não levantar os dejetos. Até o século XVIII, a potabilidade da água para consumo era realizada pelo campo visual, a partir do qual as pessoas separavam as consideradas ‘boas águas’ das ‘águas pestilentas’. Assim, caso não se pudesse enxergar as impurezas, se a água tivesse aparência cristalina e não tivesse gosto ruim, a conclusão era a de que estava própria para o consumo (BELLINGIERI, 2004).
Até meados do século XIX a preocupação sistêmica com a qualidade da água que se bebia não estava presente na agenda pública, tendo em vista o grande número de epidemias e doenças que afetavam a população no período oitocentista, tais como o cólera-morbo (FIOCRUZ, 2022), geralmente transmitido pela água contaminada. Com o crescimento dos centros urbanos e suas populações, as autoridades públicas buscaram tratar da higiene e saúde pública de forma mais ampla (MELLO, 2010).
Em relação ao tratamento da água para o consumo, a principal mudança ocorreu no início do século do XX, com instalação das primeiras indústrias no país, dentre elas, as de porcelanas responsáveis pela produção das primeiras velas filtrantes (BELLINGIERI, 2006). A união da vela de filtragem, para a purificação, com a talha, para a conservação da água fresca, resultou no formato de filtro de água atual, comum na maioria das casas brasileiras, sendo o filtro de barro, uma invenção nacional, um dos melhores do mundo (O GLOBO, 2017).
¹ Texto de Bastos Tigres produzido no período das reformas urbanas do Rio de Janeiro do início do século XX.
BELLINGIERI, Júlio Cesar. Água de beber: a filtração doméstica e a difusão do filtro de água em São Paulo. Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v.12. p. 161-191. jan./dez. 2004.
Uma Análise da Indústria de Filtros de Água no Brasil. Cerâmica Industrial, (3) mai./jun., 2006.
FIOCRUZ. Biblioteca Virtual em Saúde Adolpho Lutz. A busca de um lugar ao sol. Doenças e epidemias no Rio de Janeiro (1850-1880). Disponível em: <http://www.bvsalutz.coc.fiocruz.br/html/pt/static/trajetoria/volta_brasil/busca_doenca.php> Acesso: 24 mar., 2022.
KLAUCK, Aline Gabriela. Água, fontes e aguadeiros: o abastecimento hídrico em nossa Senhora do Desterro (século XIX). Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História, Florianópolis, 2018.
MELLO, Juliana Oakim Bandeira de. O abastecimento de água da cidade do Rio de Janeiro durante o período joanino. Revista do Arquivo Geral da cidade do Rio de Janeiro, n.4, p.159-167, 2010.
O GLOBO. Filtro de barro, invenção brasileira, é um dos melhores do mundo, 16 jun., 2017. Disponível em: <https://g1.globo.com/globo-reporter/noticia/2017/06/filtro-de-barro-invencao-brasileira-e-um-dos-melhores-do-mundo.html> Acesso em 24 mar., 2022.
TIGRE, Bastos. Cirano & Cia apud KOK, Glória. Rio de Janeiro na época da Av. Central, Bei Comunicações, São Paulo, 2005.
SILVA, Jeremyas Machado; GOMES, Flamarion Freire Da Fontoura. Faiança fina e a identidade burguesa na Uruguaiana do século XIX. Anais do 1º Salão Internacional de Ensino, Pesquisa e Extensão da UNIPAMPA, v. 1, n. 1, 2009.