A existência de um objeto remete a uma função. Temos aqui uma caixa, criação humana destinada a receber conteúdos com a finalidade de guarda. Neste verbete, então, o elemento definidor recai sobre a substância a ser preservada nessa caixa: o rapé. É o rapé que confere à caixa uma identidade específica, que a historiciza e a insere em um contexto cultural particular.
A denominação rapé é utilizada para o pó proveniente da trituração de folhas secas de alguns vegetais. O rapé aparece nos estudos antropológicos como uma substância utilizada pelos povos originários do continente americano, que pode ser de tabaco, mas de outras plantas, como o paricá (FRIKEL, 1961, p. 1). Sua difusão entre os europeus, assimilado a uma prática cultural que o levou a circular em caixas artisticamente confeccionadas, ligou-se ao uso do tabaco.
Desde os primeiros contatos com as culturas ameríndias do continente a que acabavam de chegar, europeus observaram os usos medicinais e religiosos de plantas presentes em ritos de vários povos. Dentre as várias espécies, as do gênero Nicotiana, que inclui mais de sessenta espécies – a maior parte originária da América do Sul – foi a mais rapidamente assimilada pelos europeus. A grande capacidade desse vegetal em produzir sementes, assim como seus muitos efeitos regenerativos, levaram-no a difundir-se por diferentes regiões e etnias (SANTOS, BRACHT e CONCEIÇÃO, 2013, p. 120-121).
O que conhecemos hoje como tabaco recebeu, inicialmente, muitas denominações, nos relatos de colonos, viajantes e missionários religiosos, que participaram nesse reconhecimento e difusão. Em meados do século XVI, já era intensa a circulação de informações sobre a planta. Os jesuítas, por exemplo, empenhados em registrar os conhecimentos que adquiriam com os povos ameríndios a respeito de plantas utilizadas em tratamentos de doenças, chamavam-na “erva santa, erva de todos os males e erva da rainha mãe” (VIOTTI, 2020, p. 2). Já o franciscano francês André Thevet, que levou sementes do Rio de Janeiro, em 1556, para plantar na França, conferiu-lhe o nome de herbe angoumoisine. A denominação latina do gênero parece advir de uma homenagem a outro francês, Jean Nicot, que enviou tabaco à rainha Cathérine de Médicis, procurando socorrê-la nas suas dores de cabeça, ao tomar contato com a planta em sua viagem diplomática a Portugal (MUSÉE D’HISTOIRE DE TONNEINS, s/d).
O uso sob a forma de pó foi observado por Colombo, já no seu primeiro contato com etnias do Haiti. Há descrições do uso de suportes e canudos para aspiração do pó em diversos formatos, provocando efeitos semelhantes à embriaguez (WASSÉN, 1993, p. 148). Talvez por isso, dois papas chegaram a ameaçar de excomunhão os usuários do tabaco (AISNE, s/d). A difusão, entretanto, entre a aristocracia europeia, estimulou seu cultivo no próprio continente, especialmente na França, a partir do início do século XVII (MUSÉE D’HISTOIRE DE TONNEINS, s/d). Os comerciantes portugueses valeram-se fortemente do valor mercantil do tabaco no processo de recuperação de posições comerciais na costa africana, após serem derrotados por holandeses e ingleses (FERREIRA, 2010). Na segunda metade do século XVII, o tabaco integrava o processo de mercantilização que conectava regiões do planeta, acionando, em consequência, a produção de materiais de suporte a essa circulação, como raladores, garrafas e caixas, que se transformaram, ao longo dos séculos XVII e XVIII, em objetos de joalheria, marcados pela distinção da classe social a que se destinavam, expostos hoje em vitrines de museus.
A forma do tabaco em pó, assumindo de modo definitivo o nome de “rapé”, foi apropriada pela produção fabril, na qual o território brasileiro chegou a ocupar um lugar. A revolução industrial contribuiu, assim, para a sua popularização, evidente nos relatórios de importação e exportação dos portos mais destacados da Europa. Um dado expressivo dessa ampliação do consumo apareceu divulgado no Correio Braziliense, jornal editado em Londres por brasileiros que se batiam contra o monopólio sobre a comercialização do tabaco. No ano de 1814, os editores divulgaram a carta de um produtor informando o aumento da produção de rapé, no período de 1798 a 1812, partindo de 998 arrobas e alcançando 20.458 e 19.098 arrobas, nos anos de 1811 e 1812 (CORREIO BRAZILIENSE, 1814, p. 28-29). No início do século XIX, há notícias sobre fábricas no Brasil, principalmente na Bahia, mas, também, no Rio de Janeiro. (JORNAL GAZETA DO RIO DE JANEIRO, 1810, p. 8)
O rapé era comercializado em distintas qualidades, com preços diferenciados. No início do século XIX, o mais caro vendido em Portugal denominava-se “Príncipe”; em seguida, vinha o “Princesa”, seguido pelo rapé ordinário (CORREIO BRAZILIENSE, 1814, p. 34). Mas havia, também, alguns de denominação não europeia, como o “Macoubá”, com preço elevado (JORNAL GAZETA DO RIO DE JANEIRO, 1813, p. 4). Frequentemente, a diferença resultava de misturas de ervas e substâncias acrescentadas ao tabaco, além da própria qualidade deste. Por ser mercadoria valorizada, que gerou disputa de mercados em vários continentes, encontra-se notícias de contrabando e falsificação, ao longo do século XIX.
O rapé era aspirado por uma das narinas, enquanto a outra era fechada com o dedo indicador da outra mão, depois de apoiado nas costas da mão, na base do polegar. Inalado com força, o efeito narcótico da nicotina produzia sensação agradável, ao mesmo tempo em que provocava espirros, sobretudo nos iniciantes. O hábito generalizou-se no século XIX, sendo visto como elegante, ao mesmo tempo que já percebido como vício. Crônicas publicadas nos jornais, assim como obras literárias do período, preservam relatos em que o rapé é quase uma personagem, integrando situações, por vezes, cômicas, por vezes, trágicas, da vida cotidiana.
A popularização não eliminou a distinção de classe nos suportes e usos do rapé. Mesmo o nome com que se difundiu é atribuído ao verbo raspar, na língua francesa, râper, o que pode ser tomado como um signo de distinção. Os modelos das caixas seguiam, então, a destinação de públicos consumidores, desde as latas saídas das fábricas, em geral, redondas e lisas, até as confeccionadas em metais preciosos, fruto de trabalho artístico, portadas nas algibeiras masculinas ou nas bolsas femininas. Por serem objetos preciosos, proliferam relatos de roubos, em crônicas e notícias de jornais (O ESTANDARTE: JORNAL POLÍTICO, LITTERARIO E NOTICIOSO, 1873, p. 3)
CORREIO BRAZILIENSE. Carta ao Redator sobre o comércio do tabaco em Portugal. Londres, Edição 12, 1814, p. 28-29. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=700142&Pesq=rap%c3%a9&pagfis=4975. Acesso em 14-02-2022.
CORREIO BRAZILIENSE. Portaria dos Governadores do Reino. Londres, Edição 12, 1814, p. 34. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=700142&Pesq=rap%c3%a9&pagfis=4975. Acesso em 14-02-2022.
FERREIRA, Roquinaldo. A primeira partilha da África: decadência e ressurgência do comércio português na Costa do Ouro (ca. 1637 – ca. 1700). Varia Historia, Belo Horizonte, v. 26, n. 44, p. 479-498, jul.-dez. 2010. Disponível em https://www.scielo.br/j/vh/a/sygWPsc9Q6xRzxQFyJ8xF6m/?lang=pt. Acesso em 21-02-2022.
FRIKEL, Protásio. Mori – a festa do rapé (índios Kachúyana; rio Trombetas). Boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi. Antropologia. Museu Paraense Emilio Goeldi, n. 12, p. 1-36, julho de 1961. Disponível em https://docero.com.br/doc/8nnv818. Acesso em 23-01-2022.
JORNAL GAZETA DO RIO DE JANEIRO. Avisos. Rio de Janeiro, n. 94, 24-11-1810, p. 8. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=749664&pagfis=1238. Acesso em 24-01-2022.
JORNAL GAZETA DO RIO DE JANEIRO. Avisos. Rio de Janeiro, n. 86, 27-10-1813, p. 4. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=749664&pagfis=1238. Acesso em 24-01-2022.
L’AISNE. CONSEIL DÉPARTEMENTALE. ARCHIVES. Une histoire de carotte! Les débits de tabac. Aisne, s/d. Disponível em https://archives.aisne.fr/documents-du-mois/document-une-histoire-de-carotte-les-debits-de-tabac-60/n:85. Acesso em 14-02-2022.
MUSÉE D’HISTOIRE DE TONNEINS. L’arrivé du tabac et son installation em Agenais (XVIème et XVIIème). Tonneins (France), s/d. Disponível em https://www.museehistoiredetonneins.fr/commerce/histoire-du-tabac-a-tonneins. Acesso em 14-02-2022.
O ESTANDARTE: JORNAL POLÍTICO, LITTERARIO E NOTICIOSO. Logro Cachoeiras de Itapemirim (ES), ano V, n. 15, 13-04-1873, p. 3. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=029203&pasta=ano%20186&hf=memoria.bn.br&pagfis=865. Acesso em: 23-01-2022.
SANTOS, Christian F.M. dos; BRACHT, Fabiano e CONCEIÇÃO, Giseli Cristina da. Esta que “é uma das delícias, e mimos desta terra...”: o uso indígena do tabaco (N. Rustica e N. Tabacum) nos relatos de cronistas, viajantes e filósofos naturais dos séculos XVI e XVII. Topoi, v. 14, n. 26, p. 119-131, jan.-jul. 2013. Disponível em https://www.scielo.br/j/topoi/a/ZMwxrLh4ZJwCyjXKdBVkQmj/?lang=pt. Acesso em 21-02-2022.
VIOTTI, Ana Carolina de C. As virtudes medicinais do tabaco, a ‘erva santa’, descritas por um missionário europeu no Oriente (c. século XVI). Boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi. Ciências Humanas. MCTI/Museu Paraense Emilio Goeldi, v. 15, n. 1, p. 1-24, 2020. Disponível em http://hdl.handle.net/11449/212102. Acesso em 21-02-2022.
WASSÉN, S. H.. Considerações sobre algumas drogas indígenas, em especial o rapé, e a parafernália pertinente. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, n. 3, p. 147-158, 1993. Disponível em https://www.revistas.usp.br/revmae/article/view/109169/107660. Acesso em 23-01-2022.