Mais um dia de aula do ensino primário em meados do século XIX. Toca a sineta anunciando o horário de ingresso. “As salas de aula, em geral retangulares, de tamanho reduzido e com um estrado na frente, com disposição dos bancos em fileiras que facilitavam o controle do professor sobre os alunos.” (ARRIADA, 2012, p.48). Os bancos serviam “para 10 a 15 meninos” e às autoridades era informado “o mal que desta aglomeração de crianças poderia resultar.” (OFÍCIO, de 08.01.1879 apud ARRAIADA, 2012, p.44). O velho problema da falta de atenção do Estado à Educação Brasileira!
“Classes em fila, alunos [...] em ordem. À direita o típico quadro-negro apoiado em cavaletes, [...]. Nos longos bancos, os buracos para os tinteiros.” (ARRIADA, 2012, p.47). O que os alunos mais escutam eram ordens: “Levante-se! – ordenou o professor.” (FLAUBERT, 1884, p. 2 apud ARRIADA, 2012, p. 49). Aula de desenho, bradou o mestre!
Seguindo as orientações dos manuais escolares “para realizar o desenho, era necessário a observação atenta do modelo, a fim de obter uma boa reprodução, e assim, evidenciar-se a prática de medir, feita através do treino do olhar.” (LEME DA SILVA, 2018, p.356). Os alunos deveriam realizar sucessivos desenhos, até que obtivessem a precisão, que era verificada pelo decurião (ou monitor), empregando os instrumentos (régua, transferidor, compasso, etc.) em sua avaliação. (LEME DA SILVA, 2018).
O compasso é um instrumento de medida constituído de duas hastes, cujas extremidades se afastam e se aproximam para traçar circunferências e marcar medidas. (COMPASSO, 2015). Ocupa lugar na arquitetura, engenharia e artes desde os tempos medievais. (BORGES FILHO, 2005). Nas artes sacras é retratado naquelas em que aparecem a figura de Deus como “o arquiteto do universo.” (CALIFÓRNIA, 1220-1230).
Em alguns manuais o compasso, no ensino primário, assim como os outros instrumentos, era indicado exclusivamente aos professores e aos decuriões. As práticas de desenhar à mão livre caracterizavam o ensino de saberes geométricos. Segundo os manuais dever-se-ia:
[...]iniciar o ensino de desenho pelas figuras geométricas planas, à mão livre. Entretanto, sugerem atividades em que o desenho perfeito, com medidas precisas, é exigido pelo monitor ou professor, através do uso dos instrumentos para corrigir e conferir a figura. Espera-se desenvolver habilidades nas mãos, com traçados firmes; e nos olhos, na precisão de medida por estimativa, ou seja, educar as mãos e os olhos. (LEME DA SILVA, 2018, p. 360-361)
“O desenho à mão livre, realizado pela cópia de figuras traz em sua prática a necessidade de observar e identificar propriedades que caracterizam as figuras geométricas.” (LEME DA SILVA, 2018, p.366)
Em contrapartida outros manuais defendiam o desenho geométrico que se apresentava associado às definições das figuras geométricas e com passos determinados para a construção. Os manuais escolares que circulavam no Brasil indicavam então duas propostas para o ensino de desenho e de saberes geométricos: o desenho à mão livre e o desenho geométrico, com instrumentos. (LEME DA SILVA, 2018).
Os manuais caracterizados pelo desenho geométrico, com a presença das definições antecedendo as construções, seguiram até meados do século XX, com inúmeras edições, sempre revisadas e ampliadas. Apesar da existência dos manuais que empregavam o método do ideário exterior, em que o desenho à mão livre escolariza os saberes geométricos, tal proposta não prevaleceu nas produções brasileiras, que se caracterizaram pelo desenho geométrico de figuras previamente definidas, de modo que os saberes geométricos sustentavam a prática do desenho. (LEME DA SILVA, 2018).
Com ou sem o uso do compasso nas aulas de desenho, “professor e aluno estavam concentrados, o aluno tentando não errar, o professor procurando o erro. Reina disciplina, controle e organização.” (ARRIADA, 2012). Toca novamente a sineta. Tempo para o recreio! E assim segue a vigilância e supervisão dos tempos e dos ritmos. Acabado esse tempo volta-se à sala mestre e discípulos. Fora dela, no parlamento brasileiro, uma discussão sobre os conteúdos que seriam úteis à formação feminina. Na proposta uma emenda: “quanto à Aritmética somente as quatro operações, e não se ensinarão as noções de geometria prática.” (ANNAES, 1876, p. 264 apud CUNHA e VIEIRA, 2010, p.99). Em meio ao debate, apoiadores da emenda se justificavam:
[...] onde é que hão de buscar mestras que ensinem a prática dos quebrados, decimais, proporções e geometria? Tenho visto o Brasil quase todo, e ainda não encontrei mulher nenhuma nessas circunstâncias. Querer assim imitar as nações cultas, equivale a não querer que a lei se execute. (ANNAES, 1876, p. 272-280 apud CUNHA e VIEIRA, 2010, p.99).
“A situação da educação feminina era mais grave do que a já precária educação primária” (CUNHA e VIEIRA, 2010, p.99), mas essa já é uma outra história.
ARRIADA, E. NOGUEIRA, G. M. VAHL, M. A sala de aula no século XIX: disciplina, controle, organização. Conjectura: Filosofia e Educação (UCS), v. 17, p. 37-54, 2012.
CALIFÓRNIA. Stanford Libraries — Bíblia Moralisée (Viena, Österreichische Nationalbibliothek, Codex Vindobonensis 2554), manuscrito, (34,4 × 36 cm) 262 pp, França (Paris), 1220-1230. Disponível em: https://exhibits.stanford.edu/medieval/catalog/112-25111 . Acessado em: 28/03/2022.
CUNHA, W. D. S. VIEIRA, R. A educação feminina no século XIX: entre a escola e a literatura. Gênero (Niterói), v. 11, N1, p. 97-106, 2010.
COMPASSO. In.: Michaelis Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. Editora Melhoramentos Ltda, 2015. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=compasso. Acesso em: 26/03/2022.
BORGES FILHO, F. O desenho e o canteiro no Renascimento Medieval (séculos XII e XIII): indicativos da formação dos arquitetos mestres construtores. 2005. Tese (doutorado em Estruturas Ambientais Urbanas) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
LEME DA SILVA, M. C. Práticas de desenho e saberes geométricos nos manuais escolares do século XIX. PRÓ-POSIÇÕES (UNICAMP. ONLINE), v. 29, p. 352-369, 2018.