A FAPERJ e o Departamento Cultural da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura da Universidade do Estado do Rio de Janeiro apresentam a Exposição

Chave

Alessandro Sathler

Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ

Programa de Pós-Graduação em Educação/ProPEd

Izabel Cristina Galiaço Ávila

Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ

Programa de Pós-Graduação em Educação/ProPEd

Objeto tão comum e corriqueiro que, em sua literalidade, passa despercebido em nossas memórias cotidianas, sendo muito mais lembrado o resultado de sua ação – aprisionar ou libertar – que sua própria existência material.

O uso de chaves data do antigo Egito, onde era feita de madeira, com grandes dimensões e peso, ao contrário de sua condição contemporânea, simbolizava status. Os gregos, mais próximos do ideal de funcionalidade que nos salta à memória, desenvolveram a chave de ferro, o que permitiu o uso de fechaduras mais elaboradas.

A dinâmica urbana da Revolução Industrial popularizou seu uso. Popularização essa que trouxe à tona a necessidade de adornos que diferenciassem as classes mais abastadas da plebe. Com isso, se antes as chaves eram pesadas e grandes, agora o seu tamanho diminuiu, passando a ter enfeites que simbolizavam a classe social de seu usuário.

Enquanto o instrumento se consolida ao redor do conceito de segurança, de limitar acesso, de propriedade privada, o verbete ganha significados múltiplos, chegando à casa oitocentista como ideia de poder, de posse, de guarda.

Gilberto Freyre, em Sobrados e Mucambos descreve a Casa-grande do Brasil como:

[...] um tipo de construção doméstica especializado neste sentido quase freudiano: guardar mulheres e guardar valores. As mulheres dentro de grades, por trás de urupemas, de ralos, de postigos; quando muito no pátio ou na área ou no jardim, definhando entre as sempre-vivas e os jasmins; as joias e moedas, debaixo do chão ou dentro das paredes grossas. (FREYRE, 2013, p. 169)

Fenômeno cultural que se replicou nos sobrados urbanos, os quais, segundo o autor preservaram “[...] a função da casa-grande do interior, de guardar mulheres e guardar valores.” (FREYRE, 2013, p. 169).

As chaves, para a mulher oitocentista no Brasil, mais do que símbolos de submissão e repressão, significam, efetivamente, instrumentos que as mantinham sob a posse e guarda de um senhor.

Tais instrumentos não eram acessíveis aos moradores das casas, Gilberto Freyre, em Casa Grande e Senzala destaca este fato ao tratar das funções desempenhadas por “escravos”, considerando inclusive a hierarquia entre elas, donde destaca o papel do chaveiro:

No serviço da fazenda havia funções de muita importância. Importante era o chaveiro a quem competia zelar pelas chaves das várias dependências. O chaveiro era também dentista e aplicador de bichas e ventosas. (FREYRE, 2003, p. 598)

A mulher, mesmo sinhá, não era dada a posse das chaves, estas ficavam sob a guarda de um escravo graduado, de confiança, a quem era delegado o poder de abrir e fechar portas e janelas. Poder este delegado pelo senhor, a quem cabia o pater famílias, o qual equivalia a um tipo chave legal, a qual lhe dava o domínio sobre mulheres, meninos e outros homens.

Mesmo em peças ficcionais e romances a chave, para a mulher oitocentista, representava o cárcere, a exemplo do conto A Chave (1879), de Machado de Assis, que retratava este objeto como figura simbólica que abria os corações enamorados. Na narrativa, a romântica Marcelina que pensava em casar-se, imaginava de que homem era a posse da chave que haveria de abrir seu coração.

Contudo a chave, significada de maneira cartesiana em sua simplicidade instrumental, é um objeto que tanto fecha, quanto abre espaços. E mesmo sem a posse literal deste artefato, as mulheres oitocentistas, veladamente se apropriam deste conceito e buscam ressignificá-lo, engendrando subterfúgios que, se não as libertassem, aplacavam a condição de posse e guarda a que estavam submetidas.

Exemplo da liberdade feminina possível no Brasil oitocentista foi Madame Durocher, descrita por Freyre (2013) como “[...] um virago, uma mulher-homem, vestindo-se de sobrecasaca, calçando-se com botinas de homem – foi uma das primeiras mulheres a andar a pé pelas ruas do Rio de Janeiro; e causou escândalo.” (FREYRE, 2013, p. 19). Mesmo tendo sido nomeada parteira da Casa Imperial em 1866, Mme Durocher não deixou de ser alvo de escárnio por sua aludida masculinização.

Ainda sobre a ideia de masculinização feminina estar ligada a liberdade da mulher, os primeiros cronistas ao estudarem as sociedades ameríndias descreviam as botocudas como mulheres-homem, que dividiam com os homens tarefas cotidianas e andavam sem o controle destes.

Freyre (2013) identifica o confessionário como outra dessas chaves, onde se buscava de certo grau de libertação:

Muita mulher brasileira deve se ter salvado da loucura, que parece haver sido mais frequente entre as mulheres das colônias puritanas da América do que entre nós, graças ao confessionário. [...] Confessando-se, elas desintoxicavam-se. Purgavam-se. Era uma limpeza para os nervos, e não apenas para as suas almas ansiosas do céu onde as esperavam seus filhinhos anjos gritando “mamãe! mamãe!”’ (FREYRE, 2013, p. 129)

Contraponto diametralmente oposto ao alívio da confissão é o gozo do carnaval, que para este contexto de opressão, posse e guarda do feminino, também funciona como chave de aligeirada liberdade. Freyre (2013) ao tratar do carnaval erudito, salienta a existência da outra faceta da folia:

É certo que esse carnaval elegante, fino, silencioso, de fantasias de seda, não matou o outro: o grosseiro, plebeu, ruidoso, com oportunidades para os moços expandirem sua mocidade, para os negros exprimirem sua africanidade (de certo modo recalcada nos dias comuns), para pretos, escravos, moças, meninos gritarem, dançarem e pularem como se não fossem de raça, de classe, de sexo e de idade oprimidas pelos senhores dos sobrados. (FREYRE, 2013, p. 142)

E conclui:

Numa sociedade como a patriarcal brasileira, cheia de repressões, abafos, opressões, o carnaval agiu, como, em plano superior, agiu a confissão: como meio de se livrarem homens, mulheres, meninos, escravos, negros, indígenas, de opressões que, de outro modo, a muitos teria sobrecarregado de recalques, de ressentimentos e fobias. (FREYRE, 2013, p. 142)

Para além de chaves temporárias, existia em certa medida, para um seleto grupo de mulheres, uma chave definitiva de liberdade: a viuvez.

Silva (2015) em seu artigo sobre Empreendimento Matrimonial destaca o papel da mulher oitocentista neste contexto:

Para tanto, não se pode deixar de destacar o papel das mulheres oitocentistas dentro desse quadro, tendo em mente que, se algumas ocupavam a posição de seres oprimidos pelo pátrio poder, outras eram detentoras, por ocasião de viuvez ou por outra circunstância, da autoridade máxima da família e das propriedades. (SILVA, 2015, p. 37)

A autora destaca o fato de a mulher, por ocasião da viuvez, assumir a própria vida e a autoridade familiar. Sua observação é partilhada por Brandão (2013), que ao narrar a trajetória de viúvas na Salvador oitocentista, conclui que:

Cercadas pelas responsabilidades com os pontos comerciais, premidas pela necessidade de gerir escravos, empregados e os bens herdados, entrelaçadas nas teias traçadas todos os dias, por filhos e netos, vigiadas pela sociedade e relegadas à solitude própria da viuvez, assim trilharam mulheres das mais diversas classes, cores e crenças. Tidas como silenciosas e invisíveis numa sociedade patriarcal, longe de qualquer ato heróico, mostraram coragem e determinação para tomar em suas mãos as rédeas da vida e encontraram brechas e espaços para praticar a autonomia e escolher a melhor estratégia para driblar o caminho que o destino lhes traçou. (BRANDÃO, 2013, p. 15)

De instrumentos cotidianos quase esquecidos, a uma condição de dualidade semântica, as chaves estão entre os instrumentos-conceitos que, abandonando sua literalidade, alcançam no cotidiano sociocultural e sua construção histórica, o papel de auxiliar na compreensão e explicação de anacronismos e complexidades próprias da existência humana.

O conjunto de chaves da gravura exposta, três peças em bronze, com placas de porcelana pintadas à mão, com rosas e folhas, nos traz uma alusão de pensamento de que pertenceriam a uma mulher, que poderia ser usada para fechar aposentos íntimos e também para caixas de objetos pessoais.

Referências bibliográficas

ASSIS. Machado, A Chave. . Obra Completa, Machado de Assis, vol. II, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Disponível em: https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=8245

BRANDÃO, Silmária Souza. Riqueza e poderes: mulheres viúvas na condução de suas vidas na Salvador Oitocentista. In: Conhecimento histórico e diálogo social, 2013, Natal. Anais do XXVII Simpósio Nacional de História – ANPUH Brasil. Natal: ANPUH-BR, 22 a 26 de julho de 2013. Disponível em http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1364264067_ARQUIVO_SilmariaSouzaBrandao.docANPUH2013.pdf

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala. 48ª Edição. São Paulo: Global Editora, 2003.

FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. - 1° edição digital, São Paulo: Global Editora, 2013.

SILVA, JP. Empreendimento matrimonial: uma lição mercantil. In: “Desta para a melhor”: a presença das viúvas machadianas no Jornal das Famílias [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015, pp. 25-56. Disponível em https://books.scielo.org/id/52tf5/pdf/silva-9788579836596-03.pdf