A história das práticas de leitura e de escrita está relacionada à história dos suportes de acomodação e às construções de hábitos sociais para o exercício dessas atividades. A escrivaninha portátil pode ser considerada uma derivação do mobiliário escrivaninha, cujas origens remontam à época medieval. Idealizada para o trabalho de monges copistas, à medida que a modernidade avançou, este artefato se difundiu entre outros usuários. Identificada ao trabalho intelectual, permite a acomodação de papeis, livros e outros acessórios necessários à leitura, escrita, estudo. E, justamente, é nessa temporalidade, desde o fim do século XVIII, que a escrita e a leitura ampliaram-se, especialmente considerando os estratos sociais escolarizados, dotados de capital econômico e cultural. Portanto, a escrivaninha deixou de ser um objeto restrito às funções do clero e passou a habitar as casas das pessoas, sobretudo de famílias da nobreza e da burguesia. Nessas residências, as práticas de leitura, escrita e gestão da contabilidade doméstica passaram a constituir um habitus e ganharam um cômodo específico: os gabinetes ou escritórios, geralmente com abertura para outras peças da casa, em que a escrivaninha teve posição de destaque, dividindo o espaço com poltronas, cadeiras, divã, estante para livros. Mas também esse móvel poderia estar nos quartos, lugares especiais que sugerem algum isolamento, refúgios para a evocação de pensamentos, que predispõem a leitura silenciosa e a escrita íntima.
Escrivaninhas, fixas ao chão ou portáteis, se relacionam diretamente aos parâmetros modernos que têm na emergência da individualidade um conceito fundamental. São artefatos que evidenciam desejo por privacidade, em que se estabelece uma proximidade física entre o móvel e o usuário. Possibilitam uma maior capacidade de recolhimento e de concentração. Portanto, são como uma espécie de emblema do leitor/escrevente, uma marca da sua presença e do seu oficio.
Esta “escrivaninha de viagem”, transportável, de origem inglesa, datada do século XIX, foi produzida em madeira nobre, é decorada com trabalho de marchetaria que lhe confere leveza e delicadeza. Conta com uma gaveta para guardar papeis. Provavelmente, era utilizada por pessoas que viajavam constantemente, por permitir maior mobilidade. Tal suporte facilita o exercício de escrita de cartas, bilhetes, diários, entre outros manuscritos, bem como possibilita a leitura de livros e jornais, promovendo maior conforto para todas essas atividades. Podemos entender a escrivaninha portátil como uma invenção refinada da mesa fixa ao chão. É possível que tenha sido pensada para o uso masculino, assim, seria possível ler e escrever em qualquer lugar e não apenas no ambiente doméstico ou de trabalho. Mas podemos suspeitar que a escrivaninha portátil também estivesse presente entre as mulheres, sobretudo em seus quartos, lugares de intimidade. Acomodadas em suas camas, sentadas em poltronas, podemos imaginá-las dedicando-se à leitura de textos, talvez interditados, e à escrita íntima, em diários, cartas, cadernos de poesia.
CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Editora UNESP, 1999.
PERROT, Michelle. História dos quartos. São Paulo: Paz e Terra, 2011.