[...] “os requintes da civilização, de um lado, e do outro a intelligencia dos negociantes que sabem inventar todos os dias uma immensidade de objectos indispensaveis na apparencia, porém na realidade completamente inuteis e muitas vezes muito imcommodos, tornarão os meus conselhos desapercebidos. Porém o que principalmente dou de conselho de levar comsigo para praias, para os campos, excussões, etc., é um estojo de toilette completo com a sua guarnição d’esponjas, escovas, cosmeticos de primeira qualidade. São estes, amigos intimos dos quaes nunca se deve separar uma senhora elegante, tanto em viagem como em sua casa e com o auxílio dos quaes sempre parecerá nova e bonita qualquer que seja a sua toilette.” (A ESTAÇÃO: JORNAL ILLUSTRADO PARA A FAMILIA, 30 de setembro de 1885, s/p)
Estojo de beleza, estojo de toilette ou estojo para toucador. Assim era chamado o delicado e luxuoso artigo de higiene e beleza feminino composto por uma bela caixa revestida de veludo, contendo em seu interior escovas, tesoura, esponjas, lixas e cosméticos como pó-de-arroz e rouge, revestidos por prata ou ouro. Essa versão era voltada para um público feminino mais abastado, que tinha acesso ao valioso artigo oriundo de países da Europa; o que o tornava ainda mais cobiçado. Também era possível encontrá-lo em versões menores, mais simples, ou adquirir os utensílios do interior do estojo de forma separada, por meio dos vendedores mascates. Esses vendedores levavam à casa das freguesas diversos produtos como “sedas e gazes, tafetás e cambraias, fitas e rendas, alfinetes, espelhos e broches, pó-de-arroz, sapatinhos, sandalhas, meias, toalhas, sabonetes, água-de-colônia, roupa branca, botões e mil coisas mais” (MORALES DE LOS RIOS FILHO, 2000, p. 283).
A entrada desse tipo de objeto de beleza está interligada às mudanças políticas e culturais que ocorreram no início do século XIX no Brasil, bem como à chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro. Segundo Morales De los Rios Filho (2000), a importação e a exportação, assim como o comércio, começaram a crescer de forma expressiva desde 1808, por conta da abertura dos portos para as nações amigas, e pelo alargamento ainda maior do comércio externo, com abertura dos portos brasileiros para os navios oriundos de todas as nações em 1814. O comércio urbano, por sua vez, ganhava mais flexibilidade, proporcionando um número maior de lojas com artigos variados de moda e utensílios vindos de países como França, Portugal, Inglaterra e Bélgica.
É possível encontrar o estojo ou seus objetos retratados em documentos, entre o século XIX e o início do século XX, como nas páginas de periódicos, por meio dos anúncios comerciais, folhetins e diversos artigos. Esses incutiam ideias por meio do debate sobre modelos de educação para a mulher e de exemplos de comportamento para os espaços privados e públicos, bem como descreviam e representavam o cotidiano feminino da época, através do olhar de homens e de mulheres que ousavam publicar em um meio letrado e intelectual predominantemente masculino (VASCONCELOS, 2009).
Durante os anos de 1879 a 1904 a edição brasileira do periódico A Estação: Jornal Illustrado para A Família, dirigido ao público feminino ¹ , versava um vasto conteúdo sobre a moda parisiense, sobre literatura e outras variedades. Entre publicações de Machado de Assis e Júlia Lopes de Almeida, por exemplo, a Chronica da moda ganhava destaque do editorial, contando com um rico material acerca da moda que circulava na Europa, com modelos ilustrados de vestidos, paletós, laços, fitas, toucas, chapéus, luvas, leques, entre outros adereços. Por seu turno, as crônicas possuem uma característica de leveza, pois privilegiam os pequenos acontecimentos do cotidiano, permitindo conhecer detalhes de uma determinada época (PEREIRA; NEVES; CHALHOUB, 2005). Na edição de 30 de setembro de 1885, a coluna dá destaque à moda para viagens. Nela, o estojo de beleza surge como acessório indispensável para uma “senhora elegante”, considerado de alto valor comercial e simbólico, associado a uma aparência jovem e bonita. Seu público leitor podia reunir desde mulheres abastadas, que se viam representadas através dos valores culturais atribuídos a uma aristocracia europeia, como mulheres letradas dos setores médios que alimentavam uma ascensão social. (SILVA, 2009, p. 21).
Ao lançar o olhar para esse imponente objeto do passado, que se assemelha por alguns dos utensílios aos estojos e maletas de maquiagem dos dias de hoje, nossa atenção volta-se aos detalhes luxuosos do estojo como os tecidos que o revestem ou a beleza da prata que ainda reluz mesmo depois de tanto tempo. Porém, se seguirmos os vestígios de sua história, nos depararemos com questões atreladas a uma determinada época, revelando o Modus Operandi de uma sociedade que atravessava mudanças nas concepções da educação da mulher, nas representações do feminino e em um comportamento cada vez mais voltado para o consumo.
¹ O periódico circulou de 15 de janeiro de 1879 a 15 de fevereiro de 1904, de publicação quinzenal editada pela tipografia Lombaerts, no Rio de Janeiro. Por ser uma continuação da revista francesa La Saison, ela começa o seu primeiro número a partir do ano de VIII. Era organizada em duas partes com paginação independente. Uma voltada para a moda “Jornal das modas” e a “parte literária” (CRESTANI, 2008). A parte referente à moda era traduzida da revista alemã Die Modenwelt, publicada pela editora Lipperheide, que contava com um editorial sobre a moda em Paris repleto de detalhes ilustrados (SILVA, 2009). A segunda parte trazia a literatura de autores brasileiros como Machado de Assis e Júlia Lopes de Almeida. Disponível em: http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/.
CRESTANI, Luís. O perfil editorial da revista A Estação: Jornal ilustrado para a família. Revista Da Anpoll , v. 1, n. 25, 2008.
Chronica da moda. A Estação: Jornal Illustrado para A Família ,Rio de Janeiro, 30 de setembro de 1885.
MORALES DE LOS RIOS FILHO, Adolfo. .O Rio de Janeiro imperial. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000.
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda; NEVES, Margarida de Souza; CHALHOUB, Sidney (Org.). História em cousas miúdas: capítulos de História Social da crônica no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2005.
SILVA, Ana Cláudia Suriani da. Moda e literatura: o caso da revista A Estação. IARA – Revista de Moda, Cultura e Arte – São Paulo v.2 n. 1 set./dez. 2009
VASCONCELOS, Maria Celi Chaves. Gênero, educação e cotidiano feminino na sociedade brasileira oitocentista. Dimensões: Revista de História da UFES, Espírito Santo, v. 23, p. 173-190, 2009.