Uma linda mão reclama bonitas unhas e principalmente muitos cuidados: é o signal mais valioso do gráo de importância que a mulher liga á si e aos encantos de seo corpo (...) (p.25).
Essa pequena citação é parte do texto sobre cuidados pessoais femininos publicado na seção Palestra do Médico, do Dr. Carlos Costa, do jornal A Mai de Familia de 29 de fevereiro de 1884. Os conselhos, de autoria do proprietário do impresso, estabeleciam os cuidados com a higiene e a estética, como parte dos deveres a serem cumpridos pelas mulheres no século XIX. Por tal razão, os jornais femininos veiculavam notícias sobre cuidados das mãos e, por consequência, das unhas.
Receitas para prevenir e curar “espigas”.As espigas provam seccura de pelle, e reclamam emollientes. Innumeras causas atacam todos os dias a pelle que guarnece as unhas, e levanta-a parcialmente, constituindo o que na linguagem vulgar se chama espiga ou esporão. Si se não se faz caso d’ellas, augumentam de muito, sangram e doem: em qualquer d’esses actos, a espigazinha alonga-se, destacando-se da pelle cada vez mais. Algumas pessôas têem o máo costume de arrancal-as, e até com os propios dentes; n’esse caso a orla da unha é posta á nú e a espiga cresce em cumprimento muitas vezes até quasi a primeira phalange; e se por acaso qualquer côrpo salgado põe-se em contacto com o dedo, degenera em panarício. Logo que se da a espiga, corta-se com todo o mimo pela beira (...) (COSTA, 1884, p.18).
Assim como nos impressos, os manuais femininos de beleza também procuravam ensinar às leitoras sobre práticas para manter unhas e cutículas saudáveis. Um exemplo Le libre de beauté (Book of Beauty) da norte-americana Madame Anna Ruppert (1864-1896):
As unhas Primeiro, mantenha as unhas bem limpas; esfregue-as levemente com o sabonete e a escova, observando para segurar a cutícula com cuidado para evitar desejos, que são inestéticos e dolorosos, e para que o crescente fique bem visto, que é considerado uma marca de beleza; mas não corte a cutícula muito rente, pois isso, a longo prazo, levaria à formação de um “cume” ou “margem” que constitui um defeito real (RUPPERT, 1892, s.p)
As leitoras eram apresentadas a misturas e receitas voltadas ao crescimento das unhas e a importância de mantê-las aparadas e bem cuidadas. Deve ser observado que o privilégio, das mãos e unhas bem tratadas, estava vinculado a setores privilegiados da sociedade; vide que nas camadas menos favorecidas, as mulheres exerciam atividades extenuantes (MONTELEONE, 2019).
Para que as mulheres dos séculos XIX pudessem manter suas mãos e unhas bem cuidadas era preciso que lhes fossem disponibilizados os aparatos necessários; entre eles estava a espátula de unha ou afastafor de cutícula. Instituições de guarda como o Metropolitan Museum of Art ¹, que possuem em seus acervos estojos de manicure do século XIX, apontam que tais itens podiam ser feitos de diferentes materiais como prata e marfim; além de poderem ser ricamente ornados, ou não. Segundo Clark (2020) esse processo esteve vinculado ao crescimento do mercado da beleza. A autora cita o caso do American Manicure Saloon de Mary E. Cobb (1852-1902) que popularizou nos Estados Unidos e na Inglaterra o serviço de manicura.
Para além do universo dos jornais e revistas, pode-se apontar que a temática do cuidado com as mãos e as unhas, e a vinculação a determinado padrão feminino, esteve presente no imaginário e na produção intelectual das elites brasileiras. Nos textos literários românticos do século XIX era comum descrições acerca da afabilidade e da delicadeza feminina, tendo as mãos e seus gestuais como algumas de suas principais representações. Na obra A Mão e a Luva, de Machado de Assis, é descrito um encontro entre as personagens Guiomar e Estevão na qual apenas um leve toque acarretou o despertar de sentimentos amorosos: “Guiomar desceu logo depois. A mão apertada na luva cor de pérola pousou levemente na mão de Estêvão que estremeceu todo. A moça fez-lhe um cumprimento risonho, murmurou um agradecimento e recolheu-se (...)” (1874, p.105-106). Além das representações presentes nas páginas dos livros, as mãos também se constituíram como instrumentos da sociabilidade feminina nos Oitocentos. Nos lares das elites burguesas era costumeiro que as mulheres tocassem piano para entreter familiares e visitantes; além de constituir em predicado importante para um futuro matrimônio (VASCONCELOS; FRANCISCO, 2020; BARBOSA, 2018). Nos impressos dedicados ao sexo feminino era costumeiro a publicação de peças musicais e conselhos sobre a necessidade do aprendizado do piano.
Na edição de O Jornal das Senhoras, de 28 de maio de 1854, a seção Chronica dos Salões trouxe uma nota acerca comemoração dos primeiros anos de bodas matrimoniais de Cândida do Carmo Sousa Menezes, redatora do jornal. O conteúdo da nota auxilia no entendimento da relação entre as mãos, o piano e a sociabilidade feminina: “(...) suas amigas reunirão-se para congratularem com o feliz par (...) Entre as senhoras que ao piano se deixarão ouvir, primarão, a dona de casa, e a bela de Nictheroy, que é sempre um portento quando ao piano demonstra todo seu talento musical (p.174).Também se encontra registro sobre a prática dos cuidados com pés e mãos em obras como quadro do Edgar Degas (1834-1917) Le Pédicure (1873). A pintura, pertencente ao acervo do Musée d'Orsay de Paris, retrata um senhor cuidando das unhas dos pés de uma jovem menina; contexto que remete a uma prática de cuidado com a higiene presente naquele cotidiano.
O disponibiliza para acesso online um estojo de manicure em prata identificado como proveniente de 1874/1875. Disponível em: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/210726 . Acesso em: 29.mar.2022.
ASSIS, Machado de. A mão e a luva. . In: GOMES DE OLIVEIRA & C. Bibliotheca do Globo. Rio de Janeiro: Typographia do Globo, 1874. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/view/?45000018571&bbm/4730#page/1/mode/2up. Acesso em: 26.mar.2022.
BARBOSA, Everton Vieira. Páginas de sociabilidade feminina: sensibilidade musical no Rio de Janeiro Oitocentista. São Paulo: Alameda. 2018
CLARK, Jessica P. The Business of Beauty: Gender and the Body in Modern London. London: Bloomsbury Visual Arts, 2020.
COSTA, Carlos (Dr.). Palestra do Médico. A Mai de Familia: Jornal Scientifico – Litterario. Rio de Janeiro, n.4, ano 6, 29 de fevereiro de 1884. Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/341703/per341703_1884_00004.pdf. Acesso em: 26.mar.2022.
COSTA, Carlos (Dr.). Palestra do Médico. A Mai de Familia: Jornal Scientifico – Litterario. Rio de Janeiro, n.3, ano 6, 15 de fevereiro de 1884. Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/341703/per341703_1884_00003.pdf . Acesso em: 26.mar.2022.
MONTELEONE, Joana de Moraes. Costureiras, mucamas, lavadeiras e vendedoras: O trabalho feminino no século XIX e o cuidado com as roupas (Rio de Janeiro, 1850-1920). Revista Estudos Feministas, v. 27, n. 1, p. 1-11, 2019. Disponível em: https://www.redalyc.org/journal/381/38159160008/html/ . Acesso em: 27.mar.2022.
O JORNAL DAS SENHORAS. Chronica dos Salões. Rio de Janeiro, ano 3, n.22, tomo v, 28 de março de 1854. Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/700096/per700096_1854_00022.pdf. Acesso em: 25.mar.2022.
RUPPERT, Anna Mme. Le livre de beauté: par la célèbre spécialiste américaine pour le teint. Paris: Typographique Joseph Kugelmann, 1892 Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6438305k . Acesso em: 28.mar.2022.
VASCONCELOS, Maria Celi Chaves; FRANCISCO, Ana Cristina B. Lopez M. Duas mulheres educadas no oitocentos: registros em egodocumentos femininos. Revista Caminhos da Educação: diálogos, culturas e diversidades, Teresina-PI, v.2, n. 1, p.109-123, mai./ago.2020. Disponível em: https://revistas.ufpi.br/index.php/cedsd/article/view/10997 . Acesso em: 27.mar.2022.