O medo do esquecimento obcecou as sociedades europeias [...]. Para dominar sua inquietação, elas fixaram, por meio da escrita, os traços do passado, a lembrança dos mortos ou a glória dos vivos e todos os textos que não deveriam desaparecer (CHARTIER, 2007, p. 9).
A pena de aves foi um instrumento utilizado para o exercício caligráfico durante o século XIX. Era necessário selecionar cuidadosamente a pena a ser utilizada para o exercício da escrita afim de obter uma bonita caligrafia por meio de um exercício de treino muscular. A pena, também chamada de pluma, de ganso ou de pato foi muito utilizada nesse período, quando ainda não havia outros materiais disponíveis para o exercício da escrita. Quanto mais grossa a pena, menos esforço muscular era empregado para a escrita. Para usar a pena fina, era necessário empreender uma habilidade maior para sustentá-la no treino na caligrafia. Jean Hebrárd (2001) afirma que era preciso aprender a escrever para redigir um texto simples e, ainda, o papel era caro e a pluma de ganso era difícil de ser cortada pelos dedos inexperientes das crianças, mas ainda assim, era o instrumento obrigatório para aprender a escrever.
As penas eram materiais resistentes e permitiam, primeiramente o uso sem as ponteiras. Aos poucos, com a evolução dos instrumentos de escrita, as ponteiras começaram a ser utilizadas e acabaram liberando o professor do preparo da pena para as crianças aparando a ponta com canivetes. As ponteiras utilizadas eram de diferentes formatos e espessuras (com vincos, pontiagudas, pontas grossas, pontas finas, etc.) para serem fixadas na base da pena. Significaram um avanço importante para os exercícios caligráficos e era comum haver conjuntos com diferentes tipos de ponteiras que, colocadas na ponta da pena, favoreciam e embelezavam o traçado da caligrafia, podendo ser mais fino ou mais grosso, usadas para a escrita de títulos elaborados e/ou mais criativos, bem como para a escrita de textos que mantivessem um estilo padrão para o traçado da caligrafia.
É importante refletir que escrever com a pena exigia um demasiado esforço corporal, principalmente durante o seu treino. O historiador Roger Chartier alerta que “aquele que escreve na era da pena, de pato ou não, produz uma grafia diretamente ligada a seus gestos corporais” (CHARTIER, 1998, p.16). O manuseio da pena junto ao suporte que serviria para a escrita, exigia habilidades gestuais combinadas – uso e sustentação da pena na mão e o exercício muscular para a escrita – produzindo uma arte caligráfica ornamental a partir dos diferentes modelos das ponteiras utilizadas, bem como a quantidade de tinta a ser empregada no papel, variando desde os traçados finos às possibilidades de traçados mais densos. De acordo com Razzini (2008), “os médicos higienistas recomendavam aos professores que ficassem atentos com a posição do corpo e a forma correta de os alunos segurarem a pena” (RAZZINI, 2008, p. 97), tamanho era o esforço para o treino da caligrafia.
Outro aspecto importante no exercício da caligrafia, era a quantidade adequada de tinta a ser utilizada na ponteira, bem como o tempo e o espaço necessário para traçar cada letra. A utilização da pena de aves com diferentes tipos de ponteiras, permaneceu como um instrumento de escrita por muito tempo durante o século XIX, possibilitando o treino caligráfico para os iniciantes até que os traçados já pudessem ser realizados com a pena metálica ou posteriormente com caneta tinteiro, sem correr o risco de erros e borrões que comprometessem o escrito e o papel.
CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador: conversações com Jean Lebrun. Trad. Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes. São Paulo: Editora UNESP, 1998.
CHARTIER, Roger. Inscrever & apagar: Cultura escrita e literatura Trad. Luzmara Curcino Ferreira. São Paulo: Editora UNESP, 2007.
HÉBRARD, Jean. Por uma bibliografia material das escritas ordinárias: o espaço gráfico do caderno escolar (França – Séculos XIX e XX). Revista Brasileira de História da Educação, Campinas (Autores Associados/SBHE), jan – jun. 2001, n. 1, pp 115 – 41.
RAZZINI, Marcia de Paula Gregorio. Instrumentos de escrita na escola elementar: tecnologias e práticas. In: MIGNOT, Ana Chrystina Venancio (Org.). Cadernos à vista: escola, memória e cultura escrita. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2008.