A FAPERJ e o Departamento Cultural da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura da Universidade do Estado do Rio de Janeiro apresentam a Exposição

Pena e Tinteiro

Maria Teresa Santos Cunha

Universidade do Estado de Santa Catarina/UDESC

Programa de Pós-Graduação de História/PPGH

Programa de Pós-Graduação de Educação/PPGE

A pena se lançava sobre o papel, deslizava docemente (...) bordando as flores mais delicadas (...). As folhas se animavam ao seu contato (...) a pena trêmula e vacilante caía sobre a mesa sem forças e sem vida, e soltava uns acentos doces, notas estremecidas como as cordas da harpa ferida pelo vento. (ALENCAR, José de. Ao correr da pena. 3 de setembro de 1854)

Tinteiro e caneta de pena são objetos para a escrita e, ao mesmo tempo, artefatos culturais de uma época que foram mobilizados, principalmente no século XIX no Brasil, por uma elite alfabetizada e privilegiada que era dona desses materiais em que o constante mergulhar da caneta de pena no tinteiro afiançava ao seu possuidor, além da distinção de uso, a posse de um saber técnico. A pena geralmente de ganso e mesmo de outras aves (corvo, águia, coruja, falcão) foi o instrumento de escrita mais usado no ocidente desde o século VI até o início do século XX. A pena mais comum, por exemplo, era a de ganso, as de cisne, bem mais caras, eram para ocasiões especiais e, para fazer linhas finas, a pena de corvo era a melhor. Todas exigiam tempo para prepará-las tendo em vista sua fragilidade (CLAYTON, 2015). Mas elas não estavam sozinhas para serem úteis à escrita: tinham que ser mergulhadas em um recipiente contendo tinta – o tinteiro - pois havia a necessidade de abastecimento para viabilizar seu uso. O tinteiro tornou-se, portanto, o par da caneta de pena e ambos se firmaram como dois materiais essenciais ao ato de escrever e cujo lugar de encontro se materializa na própria escrita. Imagens dessas peças raras esculpidas em prata e até em ouro figuram em coleções particulares, não raro estão depositadas como peças de museus e são dadas a contemplar nesta exposição. Elas fascinam, embalam sonhos e exalam uma força de sedução que assusta e atraí pois mostram traços descontínuos de um tempo. Pela contemplação dos objetos aqui expostos pode-se conhecer utensílios de escrita de uma época passada, imaginar um estilo de vida e de escrita que desapareceu. Ou quase. Ainda subsistem nas memórias estes objetos antigos portadores de um tempo acumulado que permitem o estudo da história da escrita.

Tinteiro e caneta de pena: o impressionismo nostálgico destes artefatos abre-se ao emocional em comunhão ilimitada com mistérios de passados: são objetos-relíquia, dotados do poder de lembrar (RANUM,1992). Objetos que possuem a presença simbólica da pessoa que os utilizou para se comunicar, escrever. Carregam consigo marcas de uma história, despertam lembranças capazes de levar a uma viagem através do tempo, capazes de fazer sentir saudades pois são objetos tocados, vividos e carregados de memórias.

Esta exposição, cuja equipe tem a liderança da professora Maria Celi Chaves Vasconcelos, da UERJ, materializa objetos que ganharam estatuto de relíquia ligados ao Brasil do século XIX e poderão constituir, no futuro, um patrimônio indispensável à escrita de uma história documental de um cotidiano familiar e educacional ao ressaltar fragmentos, situações ordinárias, minúsculas, estas banalidades que, por sedimentação, constituem o essencial da existência. Não são absolutos, mas será possível, ao expô-los, dar-lhes sentidos que é, antes de tudo, municiá-los para fazerem-se menos indecifráveis e permitir estudos e encantamentos se confrontados com os materiais utilizados nesta segunda década do século XXI. Tinteiro e caneta de pena, aqui expostos, evocam a escrita, a ação da mão sobre o papel, responsáveis pelo gesto de escrever para dar perenidade a fatos da vida e para salvar do esquecimento e eternizar em folhas, ideias e saberes. Seja, como anuncia a epígrafe, deslizando docemente sobre o papel, seja de forma firme, trêmula e vacilante (..) a caneta de pena encontra e fertiliza seu lugar junto ao tinteiro para registrar por escrito, fatos e saberes. Afinal, o que nos reuniu, nessa exposição, foi a decisão comum de escrevermos sobre estes objetos guardados, relicários suntuosos que, pelas minúcias permitem enxergar pelo detalhe o que nos prende pelo conjunto.

Referências bibliográficas

ALENCAR, José de. Ao correr da pena. (Crônicas publicadas no “Correio Mercantil”, RJ.03/09/1854). Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000130.pdf. Acesso em: 18/02/2022.

CLAYTON, Ewan. La História de la Escritura. Madrid: Ediciones Siruela,2015.

RANUM, Orest. Os refúgios da intimidade. História da Vida privada. 3. Da Renascença ao Século das Luzes. /Organização Roger Chartier. SP: Companhia das Letras, 1991. p.211-266