Dedilhar o instrumento era um affair feminino ligado à delicadeza e também à convivência de se associar o piano, como objeto doméstico, a uma atividade feminina formalmente referida como parte da sua “educação”. Com base nesse pressuposto, a prática desse instrumento e sua propagação entre as mulheres das classes sociais mais abastadas passaram a ser, em grande parte, itens do código de conduta da época (TOFFANO, 2007, p. 55).
O square-piano inglês, também conhecido como piano quadrado, é um instrumento musical muito popular na música doméstica desde meados do século XVIII, quando desenvolvido por Johann Christoph Zumpe e outros construtores alemães imigrantes que se concentraram em sua construção e adequação às demandas da música de salão. As cordas do piano quadrado - que, de fato, é retangular - correm horizontalmente pelo instrumento de um lado para o outro como as de um clavicórdio, que provavelmente foi a fonte do design.
Ao longo da história, o piano sempre foi citado como um dos artefatos significantes de sensibilidade feminina. Deslizar os dedos sobre as teclas com graça, técnica e desenvoltura na execução harmônica e perfeita de notas, acordes e melodias era considerado, invariavelmente, um conhecimento fundamental da boa educação feminina.
As aulas de piano poderiam ser dadas em casa ou em colégios, e as famílias, de acordo com seu potencial financeiro, poderiam alugar ou comprar um piano, que, por sua vez, variava de tamanho, forma e preço. É possível encontrar, nas seções dos jornais oitocentistas, anúncios de compra, venda e aluguel de pianos. Borges (2019) conta que, usualmente, tais anúncios eram acompanhados das indicações das lojas musicais, endereços e marcas que representavam, bem como de informações sobre salões, teatros e outros ambientes musicais que funcionavam na cidade; obras que eram apresentadas em concertos; nomes de professores de piano; e inaugurações de espaços musicais.
Dessa forma, o piano tornou-se um artefato ligado à atividade intelectual, mas que também remete a conceitos sobre vida, civilização, arte, educação, valores morais, culturais e políticos de uma época e sociedade. Para além, por vezes convertia-se em parte do patrimônio familiar capaz de saldar dívidas, por representar valor significativo no mercado ou por atender um dos requisitos das prendas domésticas ensejadoras para a realização de um bom casamento. Ao discorrer sobre a casa, os cenários cotidianos e os bens da viscondessa de Arcozelo, uma mulher nobre dos Oitocentos, Vasconcelos (2020) registra que
Além do mobiliário, no gabinete de estudo, reforça a ideia de ser este o local de escrita de Maria Isabel, o fato de haver um “forte piano de mogno, meio armário, com 3 cordas e 7 oitavas, do afamado autor Victor Prealle, e 1 mocho de mogno, com assento de palhinha, para o mesmo”, sendo o piano um objeto comum nas salas aristocráticas femininas oitocentistas (VASCONCELOS, 2020, p. 24).
A Gazeta Artística, nos seus volumes 6 e 8 de 1910, enaltece a importância de um piano como condição de “bem estar da vida”, que por si preenche e alegra um ambiente, independentemente de ser executado por mãos boas ou modestas, pois “para grande parte do nosso meio o estudo do piano é feito por ostentação, ou porque se tem um piano em casa que é preciso aproveitar e também por fazer parte da boa educação [...] (GAZETA ARTÍSTICA, ano 1, nº 8, 2ª quinzena de março de 1910).
O piano permeou o imaginário criativo de artistas e, dessa forma, materializou-se em várias telas mundialmente conhecidas. As pinceladas de Degas (1834-1917), em Madame Camus ao Piano; de Toulouse-Lautrec (1864-1901), em Madame Juliette Pascal no Piano; de Matisse (1869-1954), em Lição de Piano; de René-Magritte (1898-1967), em Georgette ao Piano; de Van Gogh (1853-1890), em Senhora Gachet ao Piano; de Guillaumin (1841-1927), em Garota ao Piano; de Robinson (1852-1896), em Ao Piano; e de Renoir (1841-1919), em Jovens Pianistas e Mulheres ao Piano, descortinam ao mundo esse universo em que o piano é sinônimo de beleza, cultura, boa educação e sensibilidade femininas.
Também os escritores que coloriam o imaginário da sociedade narravam sobre mocinhas casadoiras e heroínas, não raro mencionando o artefato como parte integrante do seu cotidiano. Macedo (1844, p. 34), em A Moreninha, fala de sua consolação ao “vê-la correr para o piano”; Caminha (1893, p. 37), em A Normalista, menciona a hora em que a normalista tocava uma valsa ao piano; José de Alencar (1875, p. 161), em Senhora, lembra que o “piano, que é para as senhoras como o charuto para os homens, um amigo de todas as horas, um companheiro dócil e um confidente sempre atento”, ao passo que em A pata da Gazela apresenta Amélia estudando, ao piano, os exercícios de Herz. Machado de Assis apresenta-nos Guiomar sentada ao piano, em A mão e a Luva, e em Dom Casmurro conta que a senhora que não sabia tocar piano acabou aprendendo depois de casada, rapidamente passando a tocar nas casas de amizade. Em A Dama das Camélias, Alexandre Dumas (1848) traz Marguerite, que, sentada ao piano, “deixava correr os dedos sobre o teclado e começava peças que não terminava”.
O piano que vemos na fotografia é um “square piano”, conforme se lê na inscrição de sua placa dourada, envelhecida e apagada pelo tempo, que o artefato ostenta logo acima do teclado marfim. Foi encomendado pela Família Real Britânica e trazido para o Rio de Janeiro pela família William McEwert McGregor, por volta de 1900. Os pianos desse estilo, conhecidos como “square”, eram muito apreciados na Europa dos séculos XVIII e XIX e costumavam ser presenteados às damas da nobreza, que os detinham como algo muito pessoal. O tamanho e o estilo desses instrumentos confirmam essa característica. Este piano, em especial, foi uma encomenda do Rei George IV para presentear sua filha, Charlote, o que indicaria que o instrumento tem, aproximadamente, duzentos anos.
Os fabricantes, “William Stodart & Son”, trabalhavam para a Família Real Britânica. O móvel é de mogno, laqueado, decorado com pinturas de florões feitas à mão e, comparado a instrumentos similares e contemporâneos, considerado uma raridade. A ausência de número de série, geralmente colocado pelos fabricantes em todos os instrumentos, pode ainda sugerir que seja único, ou seja, teria sido realmente produzido exclusivamente para atender a uma encomenda da Família Real, o que confere à peça um valor significativo, do ponto de vista histórico.
ALENCAR, José de. Senhora. Ministério da Cultura: Fundação Biblioteca Nacional — Departamento Nacional do Livro. Disponível em <http://www.dominiopublico.gov.br/. A pata da gazela. São Paulo: Ática, 15ª ed., 1998. (Bom Livro)
ASSIS, Machado de. A mão e a luva. Disponível em: http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/Livros_eletronicos/amaoealuva.pdf.Dom Casmurro. Saraiva, 2010
BORGES, Aline Maia. A cultura pianística em São Paulo: um recorte da memória urbana (1890-1914). Dissertação Mestrado em História - Programa de Estudos Pós-Graduados em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2019.
CAMINHA, Adolfo. A Normalista Editora Magalhães & C, 1893
DUMAS FILHO, Alexandre. A dama das camélias. São Paulo: Brasiliense, 1965.Gazeta Artística, ano 1, nº6, 2ª quinzena de fevereiro de 1910. Gazeta Artística, ano 1, nº 8, 2ª quinzena de março de 1910.
MACEDO, Joaquim Manuel de A Moreninha. Moderna, 2015.
TOFFANO, Jaci. As pianistas dos anos 1920 e a geração Jet-Lag – o paradoxo feminista. Brasília: Editora UnB, 2007).
VASCONCELOS, Maria Celi Chaves Escritas femininas na casa oitocentista: memórias sobre o diário da viscondessa de Arcozelo. Revista História da Educação (Online), 2020, v. 24: e97649 DOI: http://dx.doi.org/10.1590/2236-3459/97649