A piteira, também conhecida como boquilha, é um objeto que podia ser feito de osso, âmbar e, após 1985, passou a ser feito de material sintético. A piteira apresentada nessa exposição é feita de marfim, um material orgânico de aparência branca, muito resistente e que é extraído das presas de alguns animais como elefantes e hipopótamos. Conforme ressalta Alves (2017, p. 147), “é importante observar que o comércio internacional de marfins foi proibido em 1989”. Portanto, a piteira aqui exposta cumpre o papel de ser um objeto para estudos históricos.
Inicialmente, as piteiras foram pensadas para que se pudessem preservar os cachimbos, pois quando suas hastes quebravam, geralmente, os cachimbos precisavam ser descartados devido ao fato de que a haste junto com o fornilho¹ formavam uma peça única. Com piteiras removíveis esses objetos durariam mais tempo e, além disso, seria possível variar na estética dos cachimbos trocando suas partes e fazendo combinações com peças diferentes e de materiais diversos.
Posteriormente, a piteira passou a ser utilizada com o cigarro, estando diretamente ligada à questão de que os cigarros não tinham filtros, fato que só mudou “na década de 1950” como “primeiro recurso utilizado para a redução de alcatrão e nicotina na fumaça”. (ALVES, 2016, p. 32) Inclusive, o comprimento das piteiras também é um fator que está ligado à redução de danos à saúde. Hissa observa que algumas formas de amenizar os males físicos e psicológicos do tabaco alcançava-se “usando cachimbos de longas hastes e longas piteiras em charutos.” (PARVILLE, 1869, 2-3 apud HISSA, 2020, p. 115)
Entretanto, a luta feminina pelo direito à igualdade de gênero e à liberdade de expressão é bem mais antiga do que essa discussão sobre a necessidade de pôr, ou não, filtros em cigarros e acontece em todas as sociedades do planeta. A briga por direitos na política, nas ciências, no mercado de trabalho etc. está sempre em pauta no dia a dia da mulher no Brasil e no mundo. Para ter acesso e direito ao fumo e ao direito de fumar em público não foi diferente.
Nas palavras de Hissa (2020, p. 114), o cigarro “parece ter sido mais associado a homens, ricos ou pobres, até fins do século XIX, quando busca também o mercado feminino”. Contudo, estudos apresentados no Women and Smoking (Relatório do Cirurgião Geral do Escritório de Fumo e Saúde dos Estados Unidos) observam que o fumo, na forma de rapé² , já era consumido por mulheres, jovens e senhoras, no início do século XIX. Além disso, mulheres por todo o canto usavam o fumo em suas variadas formas: nas montanhas consumiam-se os cachimbos; nas fábricas, o rapé; as boêmias fumavam os charutos; e as mulheres urbanas, os cigarros. A situação do tabaco usado pelas mulheres passou a incomodar de tal forma que, em 1908, Nova York aprovou uma lei que tornava ilegal o ato de fumar em público para elas.
Cruzando os fatos, chega-se à conclusão de que o uso da piteira no Brasil, entre as mulheres, ficou muito popular nos anos de 1920, com o surgimento do consagrado modelo de melindrosa que incluía um lindo vestido, luvas compridas nas mãos, um estiloso gorro na cabeça e um cigarro acompanhado de longa piteira. Alexandre Melo (2014, p. 3195) observa que “a moda melindrosa espalhou-se pelas principais cidades do Brasil”. Esse movimento, da força feminina que tomou o país, virou tema de música em forma de marchinha de carnaval.
[...]Pinta, pinta, pinta, pinta melindrosa. Pinta, pinta, pinta, pinta, pinta bem. Quem não torna suas faces cor-de-rosa. Pinta o sete lá na rua com alguém[...] (JUNIOR, 1926)
O traje da melindrosa é utilizado até hoje como fantasias de carnaval e em bailes com essa temática, sempre incluindo cigarro acompanhado de longa piteira. O vestido está mais curto e decotado e, na cabeça, as mulheres costumam usar uma fita com uma linda pena. Para a mulher no final do século XIX e início do século XX, fumar cigarros representava transgressão às regras impostas, pois até então o fumo era privilégio dos homens, restando às mulheres fumarem em clubes exclusivos para este fim.
¹ Fornilho do cachimbo é a parte onde se coloca o fumo para acender.
² O rapé é um pó cuja matéria-prima é o tabaco. Esse pó era inalado em cerimônias espirituais.
ALVES, Rogéria C “FASCINANTE MARFIM”: A CIRCULAÇÃO DOS OBJETOS EM MARFIM DE ORIGEM AFRICANA (ANGOLA, PORTUGAL E BRASIL, SÉCULOS XVIII E XIX). Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº14, Jan/Jun 2017, p. 137-156 | Disponível em: www.ars.historia.ufrj.br
ALVES, Venise B. A INFLUÊNCIA DA DENSIDADE DO FILTRO DE CIGARROS NOS TEORES DA FUMAÇA. Dissertação de Mestrado. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL, Porto Alegre, 2016.
JUNIOR, F. Pinta, Pinta, Melindrosa 78RPM Intérprete: Fernando. 1926. Disponível em: https://immub.org/compositor/freire-junior. Acesso em: 26 mar. 2022
HISSA, S.B.V. Fumo e cachimbos estrangeiros na moderna São Paulo. R. Museu Arq. Etn. 34: 111-131, 2020
MELO, A. V. S. Melindrosas e almofadinhas: O masculino e o feminino por meios das charges nas revistas ilustradas (Recife, década de 1920). Universidade Federal Rural de Pernambuco, Recife – PE – p. 3195-3210
US. Centers for Disease Control and Prevention. National Center for Chronic Disease Prevention and Health Promotion. Women and smoking: a report of the Surgeon General. Rockville: U.S. Dept. of Health and Human Services, Public Health Service, Office of the Surgeon General, 2001. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK44303/. Acesso em: 26 mar. 2022