A FAPERJ e o Departamento Cultural da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura da Universidade do Estado do Rio de Janeiro apresentam a Exposição

Aquecedor de cama

Marta Maria Gama

Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ

PPrograma de Pós-Graduação em Educação/ProPEd

Eu passo por cima da minha infância. Era uma época em que eu era muito considerado nesta família. No início do outono, eu era esfregado e polido até que você pudesse ver seu rosto em mim. Na primeira noite fria, algumas brasas de madeira de nogueira foram cuidadosamente colocadas em mim; eu tive o prazer e a honra de ser passado por cima e por baixo na cama de minha patroa até que ela estivesse bem aquecida, e este serviço eu prestei a ela constantemente até o dia em que o tempo quente voltou. Quando alguém da família estava doente, eu era empregado no mesmo serviço para ele ou ela; ou quando os convidados vinham passar a noite, eu desempenhava este ofício para eles... Após a morte de meu senhor e minha senhora, fui mandado para o sótão para ser colocado entre as coisas velhas inúteis, como espadas de cavalheiro, jarros quebrados, chaleiras sem nariz etc. A razão para isso não é que eu esteja desgastado, mas porque a idade é tão mais sábia que eles chegaram à conclusão de que as camas frias são mais saudáveis do que as quentes. Boston, meados do século XIX (2003, p.29-30) . 1

O trecho acima pertence ao livro Who spoke next (Quem falou em seguida) da autora norte-americana Eliza Lee Cabot Follen (1787 – 1860). Escrito nos Oitocentos, o texto descreve, delicadamente, as memórias de um aquecedor de cama que relata, em tom de nostalgia, como era útil ao oferecer conforto e alento durante o inverno até cair em desuso e ser deixado em um sótão. A obra História de minha vida de George Sand, pseudônimo da escritora francesa Amandine Aurore Lucile Dupin (1804-1876), auxilia no entendimento sobre o quão rigoroso eram os tempos invernais na Europa ao descrever alguns dos rituais seguidos por sua avó antes de dormir: “(...)lhe colocavam na cabeça e nos ombros uma dúzia de touquinhas e de pequenos xales de seda, de lã e de algodão (1952 Apud PERROT, 2011, p. 75).

Segundo John Gloag (1952), o aquecedor portátil de cama foi utilizado desde meados do século XVI e aquentou muitas famílias europeias, a maioria abastadas, até o século XIX. Ele o definiu como uma caixa rasa circular com uma tampa e uma longa alça de madeira, muito semelhante a uma pequena panela. Caixa feita principalmente em metal, no seu interior eram inseridas cinzas quentes. A tampa era perfurada por pequenos orifícios que permitiam que o calor se espalhasse, mas impedia que as brasas escapassem. Posteriormente, o aquecedor era posto sobre cama e os lençóis (1952, p.499).

Para aquecer a cama, também eram usadas comadres de latão com uma longa alça que eram enfiadas embaixo do colchão. Algumas camas tinham um vão localizado no centro de sua estrutura de madeira projetada para segurar um pote de combustível incandescente. No século XIX, após a chegada do abastecimento público de água, o uso de garrafas de água quente de cerâmica tornou-se comum. A água era um meio de aquecimento muito mais seguro do que o fogo latente. Esses dispositivos eram protegidos por uma capa de tecido e usados como aquecedores de pés, de mãos ou de cama (DE DECKER, 2015). Com os avanços técnicos, a produção de cobre inglês melhorou, diminuindo o perigo de rachaduras ou falhas durante o uso

Além de esquentar a cama, os aquecedores portáteis também eram objetos de decoração. As panelas que alojavam as brasas, além das tampas perfuradas, eram gravadas por metalúrgicos que às vezes trabalhavam nos brasões de uma família específica para a qual a panela era destinada (LONGMAN, 1978). A autora francesa, Cora Millet-Robinet (1798-1890), reforça tal perspectiva ao destacar que, dependendo do poder aquisitivo de cada família, esse item doméstico podia ser belo, ter alto valor material e personalizado. Tudo isto somado ao prazer de dormir em uma cama quentinha (p.99). No entanto, no dizer de Perrot (2011) “Dormir, mas não demais. Na cultura ocidental (maior parte da Europa), o sono, no século XIX, não tinha boa reputação. (...) É preciso esperar a segunda metade do século XX para que o sono seja considerado uma função ativa do organismo” (p.78).

No prefácio de História dos Quartos, Michelle Perrot (2011) destaca que o referido cômodo se constitui como um indutor de sentidos: “O repouso, o sono, o nascimento, o desejo, o amor, a meditação, a leitura, a escrita, a procura de si mesmo” (p. 15). Tudo acontece em torno do quarto, não importa sua arquitetura ou objetivo para o qual ele foi feito. Pode se destacar pela ideia “de limites, de cerca, segurança, segredo, quer se trate de proteger moças, mulheres, pessoas importantes ou desaparecidas” (PERROT, 2011, p.19). A historiadora aborda um dado conhecido, porém importante. “Na cama passamos mais de um terço de nossa vida. Ela materializa a grande divisão da noite e do dia, sela a aliança sombria do indivíduo e da noite” (p. 75).

Busetto (2006) conta que na Itália, o aquecedor de prata tinha o formato oval ou circular com tampa perfurada para uma melhor difusão do calor (os orifícios eram chamados de sfiatatoi). Os pés eram de madeira ou metal e possuíam alça de rolagem elaborada com suporte de madeira ou marfim no centro. O autor descreve a existência do costume feminino de segurar um aquecedor ao lado do corpo ou sob a roupa; o motivo era a crença popular holandesa de que as mulheres poderiam engravidar caso postassem o aquecedor na barriga e, dessa forma, aquecerem o útero. Na região italiana da Toscana, havia uma crença semelhante, em certos aspectos, mas a responsável por aquecer o útero feminino era uma fada (BUSETTO, 2006).

No contexto atual, em 2018, foi exibido um aquecedor de cama antigo, no Museu de Etnografia e Artesanato de Arte da Ucrânia, localizado na cidade de Lviv. O responsável pelo setor de exposições Andrii Kolotai, disse em entrevista ao The Day newspaper, que o referido Museu herdou este item do seu antecessor, o Museu de Arte e Artesanato de Lviv, fundado em 1874. Como também afirmou que “Na Inglaterra, por exemplo, essa coisa era um item doméstico muito comum”. Outro fato abordado por Kolotai foi a curiosidade e alegria das crianças ao terem contato com um aquecedor de cobre, costumeiramente utilizado pelas camareiras para aquecer as camas de seus patrões. Quando indagado sobre a reações das crianças, ele respondeu que elas tinham visto um aquecedor de cama em funcionamento no filme Piratas do Caribe: A Maldição do Pérola Negra (Pirates of the Caribbean: The Curse of the Black Pearl – 2003). No decorrer da entrevista e da reportagem, pinturas do holandês Jan Steen (1626-1679) e do inglês Ralph Hedley (1848-1913) trazem referências imagéticas sobre o aquecedor de cama portátil.

Referências bibliográficas

BED WARMERS. In: Old & Interesting Magazine [Online]. 2007. Disponível em: http://www.oldandinteresting.com/bed-warmers.aspx . Acesso em: 20.mar.2022.

BUSETTO, Giorgio. Un oggetto di cui si e' dimenticato l'uso lo scaldino in argento (Um objeto esquecido: o aquecedor de prata). In: Associação de Pequenos Colecionadores de Prata Antiga – ASCAS. Disponível em: https://www.ascasonline.org/articoloDICE72ITA.html Acesso em: 18.mar.2022.

DE DECKER, Kris. Restoring the Old Way of Warming: Heating People, not Places. Low-Tech Magazine. Doubts on progress and technology. Proofreader: Jenna Collett. fev.2015. Disponível em: https://solar.lowtechmagazine.com/2015/02/heating-people-not-spaces.html Acesso em: 26.mar.2022.