A FAPERJ e o Departamento Cultural da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura da Universidade do Estado do Rio de Janeiro apresentam a Exposição

Porta Joias

Simone Silveira Amorim

Universidade Tiradentes/Instituto de Tecnologia e Pesquisa

Programa de Pós-Graduação em Educação

Vislumbrar o cotidiano das mulheres no século XIX é tarefa, a princípio, desafiadora, mas visualizar algumas peças por elas utilizadas nos ajuda a compreender o lugar dessas personagens na sociedade, obtendo-se uma certa dimensão da cultura da época. Por exemplo, para uma mulher daquele período, usar joias a colocava em um lugar de distinção, porém sua representação na sociedade não se limitava ao uso ostensivo delas, mas também ao devido acondicionamento dos objetos de adorno que denotavam religiosidade, moralidade, feminilidade, dentre outros aspectos.

Para tal, era preciso possuir o local adequado e que estivesse à altura do que nele seria guardado, sendo essa a função do elegante porta joias em formato de escrivaninha, com detalhes externos que incrustavam nele a representação do seu conteúdo. Assim, constitui-se como um objeto que tem o objetivo de guardar pequenos adereços femininos, assim como objetos que, por suas dimensões e usos, necessitam ser mantidos em um local de fácil acesso; possuem, usualmente, relativo valor econômico, mas que também possuem valor sentimental ou prático, diante do significado e tipo de uso de cada um deles.

Quanto às emoções, Ahmed (2004) informa que é preciso questionar sobre o que elas fazem e porque, mediante elas, sentimo-nos de uma dada maneira. Assim, a construção delas vai além de construtos sociais internos, não podendo ser consideradas como reações simplórias e usuais, mas devem ser entendidas como práticas geradas pelas relações culturais e sociais que o indivíduo constrói durante o seu viver. Dessa forma, “[...] ao invés das emoções serem entendidas como surgindo de dentro para fora, as emoções são assumidas como vindo de fora e movendo-se para dentro.” (AHMED, 2014, p. 9).

Sobre representação, Chartier (2002) nos convida a compreendê-la como sendo “[...] do crédito concedido (ou recusado) à imagem que uma comunidade produz de si mesma, portanto de seu ‘ser percebido’, que depende a afirmação (ou a negação) de seu ser social” (p. 10). A partir desta concepção, é possível afirmar que possuir joias e as usar permitia gerar a representação pretendida a partir do olhar sobre si e do outro, ou seja, a forma como suas usuárias gostariam de ser vistas por toda a sociedade.

Santos (2016), ao investigar inventários de mulheres por ela descritas como sendo “de posses”, identificou objetos de ouro como argolas, crucifixos, pares de brinco, fivelas, botões, anéis, cordões, imagens de santas da igreja católica, enfeites de cabelo, dentre outros. Alguns dos adereços mencionados reportam ao sentimento religioso que envolvia a sociedade oitocentista e aos rituais femininos de preparação para participar da liturgia religiosa. A religiosidade fortaleceria a família em seus aspectos voltados à moralidade, perante a sociedade. As mulheres oitocentistas também tinham um papel essencial em meio a alta sociedade.

Portanto, no que diz respeito ao mundo feminino no século XIX, é possível adentrar nesse imaginário para compreender a importância de ter um porta joias para guardar as peças que possuíam valor não somente pecuniário, mas também emocional, especialmente quando herdadas, representando a continuidade e o fortalecimento das relações e laços familiares. Assim, o porta joias se constitui como uma “[...] tradução externa das tais sensibilidades geradas a partir da interioridade dos indivíduos.” (PESAVENTO, 2005, s. p), sendo que elas dizem respeito ao imaginário, relacionando-se à cultura.

Segundo Eagleton (2011, p. 184), “a cultura não é unicamente aquilo de que vivemos. Ela também é, em grande medida, aquilo para o que vivemos”. Assim, é possível pensar que viver para a família, em um ambiente envolto em religiosidade, questões econômicas e sociais são aspectos que reforçam a necessidade de fortalecer as representações coletivas. Assim, a cultura denota, em alguma maneira, o acesso à subjetividade social que não pode ser medida, mas compreendida a partir de modos de agir, gesticular, vestir, falar, sorrir, também pelos objetos que alguém possui e os usos que faz deles.

Para Perrot (2011), diversos aspectos da vida em sociedade concorriam para que as mulheres fossem direcionadas aos seus quartos, dentre eles: a organização doméstica, a religião, a decência e a moral, o erótico, dentre outros. Acrescente-se aqui a feminilidade, a partir do uso dos adereços femininos guardados em um porta joias. Nessa perspectiva, lança-se o olhar para o formato do porta joias: uma escrivaninha. Elegantemente esculpido, seus detalhes remontam à delicadeza e à sensibilidade, elementos culturalmente construídos, fortalecendo a representação do imaginário feminino.

Embora pareça ser, a princípio, um ato pretencioso tentar recompor cenas cotidianas de um passado relativamente distante, no século XIX, a partir do imaginário que evoca elementos como cores, gestos, ações, reações, olhares, odores, lugares e comportamentos não mais usuais, os indícios gerados pelo objeto em questão nos remontam a uma realidade que permite reviver uma ínfima parte da rotina de personagens da história. É possível concluir que essas histórias seriam outras se não fossem esses pequenos e ao mesmo tempo tão significativos objetos que compõem o viver de indivíduos na sociedade em que estão inseridos.

Referências bibliográficas

AHMED, S. The Cultural Politics of Emotion. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2014.

CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e quietudes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002.

EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. 2ª edição. São Paulo: Editora Unesp, 2011.

PERROT, Michelle. História dos Quartos. São Paulo, Paz e Terra, 2011.

PESAVENTO, Sandra Jatahy.Sensibilidades no tempo, tempo das sensibilidades. Nuevo Mundo Mundos Nuevos [En ligne], Colloques, mis en ligne le 04 février 2005. Disponível em: <http://nuevomundo.revues.org/229>. Acesso em: 4 fev. 2022.

SANTOS, V. M. As mulheres de posses: a instrução dos órfãos menores na Capitania de Sergipe Del Rey no século XVIII. 1. ed. Fortaleza: Imprece, 2016. v. 1. 322p.